O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes

O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes Andrey Khrzhanovskiy Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Nessa mistura de animação e ópera, acompanhamos o século 20 na Rússia e o reinado de terror de Josef Stalin por meio de fragmentos inspirados no clássico O Nariz, escrito por Nikolai Gógol em 1836. Com trilha da obra homônima da década de 1920 do compositor Dmitri Shostakovitch, a narrativa combina cenários históricos, biografias de importantes personagens da época e obras-primas de artistas, compositores e escritores russos de vanguarda que viveram durante esse período de totalitarismo.
Direção: Andrey Khrzhanovsky
Título Original: Нос, или Заговор не таких | Nos Ili Zagovor Netakikh (2020)
Gênero: Animação
Duração: 1h 29min
País: Rússia

O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes Andrey Khrzhanovskiy Filme Crítica Mostra SP Imagem

Rússia Sem Modo Avião

O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes” é mais uma animação que chega na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo após passar pelo festival Annecy, um dos mais relevantes nessa linguagem. O russo Andrey Khrzhanovskiy guarda semelhanças com o polonês Mariusz Wilczyński, realizador de “Mate-o e Saia Desta Cidade“. Ambos participam da Competição Novos Diretores, todavia, possuem larga experiência. Aqui estamos falando de um cineasta de 80 anos, com quase duas dezenas de curtas-metragens no currículo (o primeiro é de 1966). Porém, lança agora seu segundo longa e vence, empatado com Mariusz, o grande prêmio do Júri da mostra francesa.

Khrzhanovskiy foi responsável por ter o primeiro filme de animação banido pela censura da União Soviética. Em 1968 isso acontecia com “The Glass Harmonica” (Стеклянная гармоника, 1968). Aqui parece que ele revisita um pouco aquela narrativa (deixaremos o curta-metragem disponível ao final da crítica). A mesma convergência de corpos e o olhar crítico sobre o governo do país são diálogos possíveis. Na obra antiga ele cria uma trama fantástica, carregada de terror, a partir de eventos desencadeados por um instrumento criado por um artesão, aparentemente inspirado em “O Filho do Homem” e seus derivativos autorretratos de René Magritte.

Em “O Nariz” ele aposta na musicalidade. Faz um prólogo de transposição de mundos, onde um grupo de pessoas assistem diferentes conteúdos em um avião. Uma viagem sobre manifestações culturais e dinâmicas políticas da Rússia do século XX. O cineasta, então, faz sua própria adaptação da ópera de Dmitri Shostakovich, inspirada na obra de Nikolai Gogol. Usa a clássica referência da cena da escadaria de “O Encouraçado Potemkin” (1926), de Serguei Eisenstein e traz o próprio Stálin como personagem. Lançados no final da década de 1920, a ópera e o filme geraram recepções diferentes. Visto como representante do formalismo russo, repelido frontalmente pela doutrina stalinista, soa como uma ironia a visita do líder da nação a uma apresentação do trabalho de Shostakovich – e ele usa essa visão antagônica do comandante, que tenta controlar as ações quando está em cena.

O diretor, então, faz uma construção narrativa que parece se vincular à busca por justiça. Uma justiça pela arte, aquela que transita por um espectro político diverso do hegemônico de sua época. O sucesso no Ocidente do filme anterior de Khrzhanovsky, “Room and a Half” (Полторы комнаты или сентиментальное путешествие на Родину, 2009) parece ter lhe dado a provocação necessária para transpor a sátira original de Gogol e dar a sua versão dessa junção que forma o ideário de uma sociedade que nos encanta pela complexidade e por ser muito difícil atingir uma profundidade de conhecimento com pesquisas simples. De fato, é muito mais sensorial àqueles que não são familiarizados com a cultura daquele país – mas, mesmo assim, uma sensorialidade capaz de envolver e encantar.

O Nariz” usa um conjunto de técnicas, desde animação clássica a inserção de desenhos em cenários ou fotografias (algo que o francês “Dilili em Paris“, lançado ano passado no Brasil, faz de forma muito bonita). Só que nessa proposta de historiografia de uma nação, Khrzhanovsky traz consigo imagens de arquivos e – uma das mais interessantes criações estéticas da primeira metade século passado – peças de propaganda soviética. É como se a tela se transformasse em um caldeirão que, pela batuta do diretor, fizesse todo o sentido.

Trata-se, entretanto, de uma justiça a si mesmo. Em entrevista à equipe da Mostra SP, o diretor conta que o próprio Dmitri Shostakovich o autorizou a fazer essa adaptação em 1969. Como dito anteriormente, momento em que seu projeto anterior havia sido censurado – tornando inviável a continuidade deste. Por fim, traz ao seu longa-metragem o escritor Mikhail Bulgakov, outro crítico do regime soviético. Por coincidências dos destino, também no final da década de 1920 ele começaria a escrever sua obra mais famosa, “O Mestre e a Margarida”, lançada postumamente também na segunda metade da década de 1960 – quando a carreira do cineasta era uma realidade (interrompida).

Essa convergência de manifestações vira um cosmos que é transmitida durante a animação a partir de quebras da lógica temporal. Duas mulheres podem conversar como se estivessem na Moscou pós-revolucionária, em seus conjuntos de seda tal qual se frequentava as óperas há cem anos. E, no intervalo, tirarem do bolso seus celulares e mostrarem fotos da família. Não há limites para o universo gestado por um coletivo que parte de Gogol em meados do século XIX à fluidez da transmissão de uma mostra de cinema de 2020. Se quisermos uma análise de lupa, temos um forte olhar crítico sobre a política governamental de Josef Stálin e uma marcante cena que relaciona outros aviões a nome de vítimas da perseguição política. É como se no microcosmo daquele primeiro avião, uma história caminhasse para o esquecimento a partir de uma morte trágica.

Como uma linda homenagem ao vanguardismo russo, “O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes” é a prova de que nunca é cedo para recomeçar, para levar adiante suas ideias e para resgatar o que somente o poder da arte pode proporcionar. Esperamos que as provocações de Andrey Khrzhanovsky sejam, além de reconhecidas pelo público do festival, uma inspiração para o surgimento de novas propostas de linguagens e estéticas tão ricas quanto aquelas que a Mãe Rússia sempre nos proporcionou.

Assista à apresentação de “O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes” pelo diretor Andrey Khrzhanovsky

Assista “The Glass Harmonica”

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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