Sinopse: Um jovem é enviado para “La Maca”, uma prisão da Costa do Marfim no meio de uma floresta governada pelos próprios prisioneiros. Com a lua vermelha nascendo, ele é designado pelo chefe para ser o novo “romano” e deve contar uma história aos outros exilados.
Direção: Philippe Lacôte
Título Original: La nuit des Rois | Night of the Kings (2020)
Gênero: Drama | Fantasia
Duração: 1h 33min
País: Costa do Marfim | Senegal | França | Canadá
A(s) Revolta(s) dos Reis
Representante da Costa de Marfim no Oscar de 2021, “Night of the Kings” (no original “La Nuit des Rois“) de Philippe Lacôte teve sua estreia no Festival de Veneza. O filme, que ainda não chegou ao Brasil, é uma mistura de fábula e drama que tem os dois pés na realidade. Com atuações à altura de sua narrativa, como as do protagonista Koné Bakary – em seu primeiro papel – e de Steve Tientcheu – esse já mais experiente e reconhecido -, traz o tipo de desenrolar que te faz cair na trama e somente sair dela nos créditos finais.
Ainda com uma protagonista de fundo, a prisão de Maca – maior presidio da África Ocidental -, a utiliza em todo seu excesso. Na chegada de Roman (Koné Bakary) à Maca, já observado por Dangoro (Steve Tientcheu), são apresentadas suas dimensões gigantescas em situações paralelas que ocorrem em diversas dimensões. Como se observássemos também os vários planos dentro do plano, a execução da perspectiva é essencial para nossa experiência estética. Esse, aliás, é uma grande qualidade da película para além de sua história e da construção das personagens. Assim como os planos são pensamos em um mosaico de acontecimentos, as cores também se alternam entre alaranjadas e azuladas durante quase toda trama e, só nos é dada a luz do sol em planos que transbordam para fora da história do presídio. Aqueles que esbarram na história precedente de Roman e de como ele foi parar ali.
Dessa forma, em “Night of the Kings” Lacôte brinca com histórias recontadas e suas diversas dimensões. Às vezes, podemos nos sentir como em um daqueles jogos de sombras nos quais o que é narrado é reproduzido na parede, mas não representa inteiramente (como se algo o pudesse fazer…) aquilo que se vê no plano atual. As personagens, igualmente, ganham novos nomes e funções quando passam pelas portas de Maca. Guardando ainda em si uma coisa e agora outra, permanecem na figuração do indistinto. Essa, talvez, tenha sido a grande sacada de nosso herói romano e o que faz permanecer no jogo por mais tempo.
O papel atribuído à Roman é o de contador de histórias em um espaço no qual essa aparição já seria demasiado importante para manutenção de uma ordem instituída por outras vias. Os primeiros minutos da narrativa são de adequação deste que chega em conjunto também com a nossa incompreensão. Nada é muito explicado por Dangoro que, nesse espaço, divide a ordem local com a polícia. Na verdade, a ordem como um dos próprios policiais assume, fica mais nas mãos de Barba Negra do que efetivamente da lei formal.
Essa perspicácia do filme, nos interessa analisar com mais calma. Ao mostrar esse poder paralelo -que sabemos existir-, o diretor também deixa no ar o aspecto teatral e de narrativas construídas pelos próprios presos. Uma tradição instaurada que faz persistir (e resistir) uma ordem diferente da de fora da prisão e, bem diferente daquela que seria estabelecida pelos policiais. Novamente, a ideia de jogos de sombra nos é útil. Agora, para pensar nos conceitos de habitus e ethos tal qual Pierre Bourdieu.
Lembrando que habitus para o sociólogo é o poder simbólico atribuído à alguns fatos que faz com que sejam, assim ,legitimados pelo conjunto social e que ethos são os costumes com os quais se convencionam o funcionamento de uma sociedade, podemos ler o espaço do presidio como um pequeno/grande recorte da sociedade no qual está inserido. Como antecipamos, dentro desse espaço, porém, as regras são outras. O que Philippe Lacôte (também) faz de maneira primorosa é nos contar como uma dessas tradições nascem, como ela se mantem e o que está por detrás dessa manutenção.
As tradições, pois não são meramente repetições de fatos ou símbolos. Elas o são, mas funcionam como um elo que une os indivíduos em um acordo de convivência. Todos dentro de Maca sabem seu papel e, agora, a personagem de Bakary também precisará dançar conforme a música.
Outro aspecto fundamental é a própria importância da contação de histórias para manutenção de ritos e acordos. Não à toa, essa personagem é o centro da narrativa. A tradição oral ainda fornece aos mais novos maneiras de resolução de conflitos e padrões de comportamentos esperados. Os grandes heróis, os grandes embates constroem e alimentam nossos medos e coragens. A história escolhida por Roman, de certa forma, cumpre esse papel- principalmente porque estamos dentro de Maca.
Nesse momento extraordinário de convivência, uma grande figura do crime local é (re)lembrada. Vemos que a referência ao brasileiro “Cidade de Deus” (2002), que aparece logo no início da trama em uma sequência de perseguição à uma galinha, não é passageira. Uma personagem que salta a nossos olhos com a camisa do Brasil e, com a confirmação de que a gangue local tinha como referência o filme, nos vemos diante de uma realidade bem parecida à dos presídios que conhecemos no país.
A violência instaurada dentro de um contexto de prévia violência nos remete, finalmente, ao local de origem de nossa personagem: Bairro sem Lei (com várias leis), ao lado do Paraíso. O último se faz mesmo só diante da morte. Como um sacrifício romano reatualizado com a diferença de que aqui (e em Maca), sabemos: todos irão pagar de alguma forma.
Veja o Trailer: