Sinopse: A história da vida de Noel Rosa, desde a sua juventude como estudante de Medicina e amigo de operários, favelados e prostitutas até o encontro casual com Ismael Silva e o desafio que o transformou num dos grandes compositores da música brasileira.
Direção: Ricardo Van Steen
Título Original: Noel – Poeta da Vila (2006)
Gênero: Biografia | Drama | Musical
Duração: 1h 39min
País: Brasil
Nascimento do Imortal
O filme “Noel – Poeta da Vila“, apesar de não dialogar tanto com os momentos e movimentos da cinematografia brasileira, tem o poder de nos fazer debater questões sobre a forma como estamos tratando o conflito entre direito à privacidade e os registros de grandes personalidades do país, principalmente vinculados à música. Produzido em 2006, porém lançado comercialmente em 2008 (ano em que se lembrava o centenário do nascimento desse que é um dos pioneiros do samba), muita água rolou antes e depois do marco temporal da obra, revisitada treze anos depois por conta da programação especial de Carnaval da Apostila de Cinema.
Cumpre salientar que essa produção é bem menos festiva em relação ao biografado do que outras indicações do sociólogo e pesquisador Edson Farias (clique aqui e assista à nossa entrevista, em que ele indica os seis filmes que fazem parte da maratona da folia inexistente de 2021). Muito dessa sensação com o longa-metragem dirigido por Ricardo Van Steen pode ser creditada ao material original, também usado por ele no curta-metragem “Com que Roupa?”, de 1996. Adaptando a biografia de Noel Rosa escrita por João Máximo e Carlos Didier – e lançada em 1990 pela editora UnB, onde nosso convidado é professor – uma das marcas do livro é ser bem menos paternalista e bem mais crítico à história de Noel.
Vale o registro a esse texto de Lucas Nobile para o blog Do Próprio Bolso (leia o mesmo clicando aqui). Ali está todo o imbróglio envolvendo a publicação que deu origem a “Noel – Poeta da Vila” e sua impossibilidade de reedição após o falecimento de Lindaura, viúva do compositor. Um conflito entre direitos fundamentais que se arrasta há muitos anos e teve como momento simbólico o processo de Roberto Carlos contra Paulo César Araújo, quando do lançamento de sua biografia – resultado de mais de duas décadas de depoimentos e pesquisa. Uma celeuma que não se vislumbra o fim – e que é assunto de aulas das faculdades de Direito desde o meu período de formação (e lá se vão quase vinte anos da minha jornada pela academia). Não se arrefece porque cada nova leitura ou releitura biográfica sem a chancela da pessoa ou seus herdeiros é capaz de gerar novos argumentos – e as novas mídias darão sua parte na contribuição para o conflito, não tenham dúvidas.
O filme, estrelado por Rafael Raposo, conta com a presença solar de Camila Pitanga no papel de Ceci. Quem se destaca no prólogo, contudo, é o Ismael Silva de Flavio Buraqui, também presente na biografia “Natal da Portela” (1988) (que se passa em outro ponto da cidade, quase no mesmo período). “Se Você Jurar” é um samba obrigatório para entender a popularização – e até aceitação pela parcela privilegiada da sociedade. Um compositor que conseguiu acessar os grandes intérpretes da época, algo que o longa-metragem registra em paralelo às dificuldades pelo lado de Noel e seus escritos. Isamel é um nome que merece ser revisitado pelo cinema nacional em obra própria – e talvez estejamos perto disso. Paulo Lins lançou em 2012 (cinco anos após as filmagens de “Noel – Poeta da Vila”), o livro “Desde que o Samba é Samba” que nos coloca em outro território que não a Vila de Noel e nem a Serrinha de Natal – o Estácio de Ismael, não só de “Se Você Jurar”, mas também da Umbanda e do bloco Deixa Falar.
Enquanto obra cinematográfica, a produção de Van Steen tem um ritmo bem próximo das cinebiografias “panorâmicas”, comuns de um gênero que o Brasil faz quase em piloto automático. Wilson Simonal, Tim Maia, Elis Regina, Erasmo Carlos – cada espectador será capaz de lembrar as suas. A morte precoce de Noel não torna o filme menos formulaico nesse sentido. Todas as pessoas em volta do protagonista têm funções específicas a cumprir. Seu pai, Neca (Rui Resende), por exemplo, alimentava o sonho de ser inventor e a assunção desta possibilidade nos contextualiza os reflexos da crise de 1929, iniciada nos Estados Unidos e que trouxe reflexos em todo o mundo na década seguinte.
A verdade é que Noel se jogou em uma realidade efervescente, decidiu por um caminho menos tradicional em uma época onde essa escolha era ainda mais condenável. Na montagem da música “Com que Roupa?” (edição do filme de Umberto Martins) a migração do jovem estudante da faculdade de Medicina (depois da formação secundarista no Colégio São Bento) é capaz de condensar essa mistura de genialidade para além do dom natural da arte musical. Os compassos parecidos com o do Hino Nacional são lidos pelo próprio como um deboche, um questionamento sobre brasilidade em um ritmo que se ergue no imaginário popular como uma das maiores manifestações culturais da nação.
Essa efervescência e esse mergulho mencionados cobraram seu preço e nunca saberemos o que seria do samba se Noel nos desse o prazer de sua companhia por mais alguns anos ou décadas. O filme, mesmo sendo pouco inovador no trato com a biografia, é eficiente nas representações sobre a transição pelo qual o samba passou. Começa nas calçadas, caixinha de fósforo na mão, terminando nos grandes salões e nas gafieiras com suas próprias regulações. Ao tangenciar a narrativa com esse elemento, traz aquela frase de Marcelo D2 em “Contexto”. A “conexão entre o morro e o asfalto” e o próprio filme “Legalize Já – Amizade Nunca Morre” lançado em 2017. Nele, Johnny Araújo e Gustavo Bonafé fazem do roteiro de Felipe Braga um recorte dos early years do Planet Hemp e encontram uma forma de serem mais profundos nas suas origens, concessão rara em outros exemplares do gênero.
Mesmo assim, é inegável o poder que “Noel – Poeta da Vila” tem de não apresentar apenas seu protagonista, mas o próprio ambiente histórico fundamental para entender o samba. A participação de Wilson das Neves como Papagaio é fundamental para dar um ritmo mais musicado ao filme – sendo “Último Desejo“, composto para uma serenata para Ceci que ganhar um ar de auto réquiem pelo contexto onde se apresenta, uma cena muito sensível. No fim, passam os blocos de rua – aqueles que não vivenciaremos em 2021, mas que não perde a força porque o samba – de fato – não se deixará morrer.
Escute “Último Desejo”, na voz de Wilson das Neves: