Confira crítica e entrevista sobre “Nós Passarinhos”, em cartaz na 15ª CineBH.
Assista a entrevista com Antonio Farogni:
Sinopse: Em São Paulo, Mariza divide o tempo entre o home office e colorir mandalas. Márcia pinta o teto da cor do céu. E Antônio, ou Juninho, quer parar com o trabalho de motorista de aplicativo e fazer um filme.
Direção: Antonio Fargoni
Título Original: Nós Passarinhos (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 16min
País: Brasil
Entre a Angústia e a Raiva
Abrindo a experiência da 15ª CineBH, mais um festival que ocorre online como consequência da pandemia do coronavírus ainda não controlada, “Nós Passarinhos” traz o cineasta Antonio Fargoni em um ninho que ele, sem dúvida, não gostaria de ter se colocado no início de 2020. Fazendo menção ao poema no qual Mario Quintana tratou de nossa capacidade de resiliência e superação no auge da ditadura civil-militar, o realizador consegue encontrar o mesmo tom que alia doses de melancolia e de esperança – sem deixar de lado o medo que tomou conta de nossos pensamentos nos últimos tempos (dos problemas sociais e políticos aos sanitários).
Um dos nomes por trás do Cinema Instantâneo, seus projetos se caracterizam pelas ocupações de territórios, nos levam a ambientes que mostram um Brasil profundo enquanto premissa. Em seu longa-metragem apresentado na mostra contemporânea, ele inicia nos apresentando São Paulo em um plano contra zenital captado de dentro de um veículo. Eu sou péssimo para lembrar das fontes de algumas informações, mas uma vez alguém disse (em filme ou alguma entrevista) que a melhor maneira de conhecer Nova Iorque é deitado no banco de trás de um carro. Tenho quase certeza que foi Woody Allen, mas talvez a minha cabeça tenha sido traída pela box de DVDs do diretor que surge na estante recheada de filmes do próprio Fargoni.
Assim que ele nos introduz na narrativa do grande centro urbano nacional. O espectador identifica as laterais do que parece ser a ponte estaiada ocupando as janelas, até chegar em uma árvore – objeto estranho na selva de pedras nervosa. Paramos ali para contemplar a rotina de Mariza e Márcia durante o período de isolamento social.
A quarentena não extinguiu a urbanidade como expressão possível, apenas alterou suas formas de representação e de entendimento. Sendo assim, “Nós Passarinhos” transitará entre o confinamento das residências das duas senhoras com o trabalho de Juninho, motorista de aplicativo. Completando a relação entre os personagens, ele também é Antonio, que pelo olhar da câmera, se mostra um realizador planejando fazer um filme. A geração mais jovem é tecnológica e, ao mesmo tempo, invisível. Quase todo o tempo o contato com a Humanidade se dá por aquelas senhoras.
Elas se mostram adaptadas, porém cansadas, dessa nova forma de sociabilidade. As festas e reuniões virtuais podem até divertir, mas a ideia de que estamos acessíveis a todo instante se revela assustadora. Quem precisa fazer parte da cobertura de um evento online que o diga, já que nenhuma demanda da vida deixa de caminhar e de te sufocar. Elas, então, usam o expediente cada vez mais comum de otimização do tempo. Respondem mensagem enquanto estão no banheiro. Ignoram o ócio como opção e realizam pequenos reparos em casa. Há quem tenha flertado com síndrome de burnout mesmo sem sair de sua residência, algo inimaginável com a tecnologia de dez anos atrás.
Mariza, quando não está sufocada pelo home office, colore suas mandalas. Uma forma milenar de meditação através de representações energéticas. Uma conexão com o mundo espiritual que exige paciência e que se forma com a organização e combinação de partes. Uma de cada vez. Um dia após o outro. Aqueles que ficam ao máximo em casa para cumprir uma das funções do mosaico da sociedade (a de não aumentar a taxa de transmissão do vírus, que ocorre mesmo tomando todos os cuidados e com a imunização completa), encontrarão no filme de Antonio um dos exemplares mais significativos do audiovisual pensado para esse período de excepcionalidade no qual vivemos.
Veja o Trailer de “Nós Passarinhos”:
Ainda se destacam em “Nós Passarinhos” as relações com os cachorros (uma amizade que ganhou peso ainda maior nos últimos tempos), o desafio ainda maior de solucionar problemas por telemarketings no tempo que sobra e a solidão de Juninho. Através dele, o cineasta ocupa São Paulo da maneira possível. Das fachadas do Cinesesc e da Cinemateca Brasileira cerradas até uma corrida para um dos cemitérios da cidade – algo que deve ter feito parte da rotina dos motoristas nos picos de mortes por covid-19. Em uma dessas sequências que o rapaz fala do duplo sentimento: a angústia de ver pessoas de máscara e a raiva de vê-las sem. Aos poucos fomos naturalizando a primeira imagem a ponto de mitigar nossas angústias. E aos poucos também fomos naturalizando a segunda, a ponto de misturar à raiva um pouco de desprezo – o que, convenhamos, extrai parte da nossa própria humanidade.
O diretor gosta de usar a câmera parada, contemplando um cômodo e deixando que as pessoas transitem por ele. É como se fincasse naquele espaço um ponto de observação. A abdicação da vida em comunidade é, também, um ato de amor, como demonstra sua mãe ao se preocupar com a exposição do filho ao vírus pelos passageiros que chamam seu carro pelo aplicativo. Na casa, o olhar de Antonio revista as suas memórias, mais recentes do que o que vem ocorrendo com outros realizadores. Na CineOP, por exemplo, assistimos algumas produções realizadas durante a pandemia que revisitava ou ressignificava arquivos pessoais de alguns dos participantes.
Aqui a intimidade vem a partir daquela estante de filmes – onde se destacarão suas preferências ou referências. As camisetas dos festivais secando no varal, como o 12º Comunicurtas de 2017 ou o 12º Curta Taquary de 2019, que deve trazer boas recordações de um cineasta que se consolidava nessa linguagem. Em tempos em que não saímos de casa, ressignificamos também nossas vestes e tudo o que, temporariamente, perdeu uma parte de suas funções.
Com a curiosidade de quem divide experiências, tal qual um show de realidades, “Nós Passarinhos” termina com a proposta de que chamávamos de “volta à normalidade” – acredito que muitos tenham desistido dessa nomenclatura. Mariza e Marcia terão um final que passa pelo resgate da vaidade e que culmina com… bem, deixamos esse ponto em aberto para não revelar a quem não assistiu.
A CineBH começa lembrando que o que estamos vivendo ainda terá consequências, tanto na produção audiovisual quanto nas nossas percepções sobre a sociedade. Antonio Fargoni nos entrega, então, seu diário – sem deixar de dialogar com o seu ideal de criação: obras com forte caráter de permanência. Ou seja, não será o retorno ao ninho ou a gaiola de um governo fascista que tirará a sensibilidade do cinema brasileiro contemporâneo.
Ouçaa entrevista com Antonio Farogni: