Pedro Hartung | Entrevista

Pedro Hartung

A Apostila de Cinema conversou na última semana com o Dr. Pedro Hartung, advogado e coordenador do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, que em 2018 selecionou o projeto “Um Lugar para Todo Mundo” para a edição da Videocamp Film Fund. Edital foi uma das maiores iniciativas do mundo voltada a filmes com impacto social para financiamento de uma única produção. Esse movimento reconhece a potência com que o cinema inspira e incentiva a reflexão em torno de temas socialmente relevantes.

O dia 21 de setembro é conhecido como Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência. Entre as várias ações espalhadas pelo país estava o lançamento do documentário, coproduzido pela brasileira Maria Farinha Filmes. A Apostila de Cinema já assistiu ao filme, disponível nas plataformas de streaming Videocamp e Globo Play e a crítica você lê clicando aqui.

Como complemento às questões levantadas pelo filme e trazidas em nosso texto, tanto as conversas com Pedro Hartung, quanto com Raquel Franzim, diretora de educação e cultura da infância do Instituto Alana e Marcos Nisti, representante da Maria Farinha Filmes, ampliam nossas percepções sobre o tema. As outras duas conversas estão em um podcast especial que você ouve clicando aqui. Com a palavra, o Dr. Pedro Hartung.


Pedro Hartung

Apostila de Cinema: Gostaria que começasse falando sobre o trabalho do Instituto Alana nas orientações e defesas dos interesses das crianças e adolescentes junto aos seus responsáveis.
Pedro Hartung: O Alana tem a missão de honrar a criança, promovendo e defendendo os seus direitos por meio de diferentes programas, projetos e ações, inclusive o direito à educação inclusiva. Segundo o Artigo 227 da Constituição Federal, esse é um dever compartilhado entre famílias, sociedade e Estado e que deve ser feito com absoluta prioridade. Nesse sentido, o Alana busca fortalecer políticas públicas e regulatórias boas para as crianças e dialogar com famílias e responsáveis para apoiá-los no desenvolvimento de uma parentalidade positiva e na luta por uma sociedade melhor para todas as crianças.

 

Apostila de Cinema: No filme “Um Lugar para Todo Mundo” podemos observar a realidade do Estado de Nova Iorque, onde – mesmo com uma legislação que garanta direito à educação inclusiva – os órgãos públicos se mostram resistentes a cumpri-lo. Quais as principais diferenças para o Brasil, começando pela legislação?
Pedro Hartung: As Nações Unidas aprovaram, em 13 de dezembro de 2006, a Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Os EUA são signatários da Convenção mas nunca ratificaram o texto. Na prática isso significa que o texto não tem efeito legal no país. Para isso, a Convenção precisaria ser ratificada pelo Senado norte americano. Ainda, por lá há a Lei para Indivíduos com Deficiência, conhecida pela sigla IDEA – Individuals with Disabilities Education Act, em inglês -, que prevê a oferta de educação pública e gratuita para crianças com deficiência em todo o país e assegura a elas acesso à educação especial e a serviços de apoio. Contudo, cada estado regula de uma forma o entendimento dessa lei. No Estado de Nova York, onde a história se passa, predomina um entendimento biomédico do que é deficiência dentro do sistema educacional. Isso quer dizer que o olhar para a criança com deficiência parte do ponto de vista clínico, de saúde, e não do ponto de vista educacional. Quando se exige que as crianças sejam “avaliadas e testadas” para serem matriculadas numa escola comum, toma-se como pressuposto um padrão exigido para acessar a sala de aula comum.

Já no Brasil, a Convenção da ONU tem força constitucional e garante para todas as crianças o direito fundamental à educação inclusiva. Assim, nossa legislação assegura o direito de toda criança se matricular na escola comum, não sendo necessário o aval de especialistas ou médicos para garantir uma vaga. Esse direito alinha-se com a perspectiva da Educação Inclusiva, que parte do olhar para a criança como uma pessoa com capacidade e com direito de acessar a sala de aula comum, independentemente de suas características físicas, cognitivas, intelectuais. Entende-se como um direito inalienável que todas as crianças – com e sem deficiência – tenham a oportunidade de conviverem em um espaço comum e que sejam consideradas em suas possibilidades, capacidades e habilidades.

Apostila de Cinema: Em continuidade à pergunta, como se opera o exercício deste direito por aqui, tanto pelas instituições públicas quanto privadas? Há o mesmo tipo de resistência como foi mostrada nos EUA?
Pedro Hartung: Infelizmente, apesar da nossa legislação, há muitas escolas que recusam a matrícula de crianças com deficiência ou criam obstáculos a ela, como a cobrança ilegal de taxas. Importante ressaltar que essas práticas são ilegais e recusar matrícula de qualquer criança é crime.

Um Lugar para Todo Mundo Documentário Crítica Imagem

 

Apostila de Cinema: O Instituto também atua em casos onde a judicialização é necessária? Qual a realidade hoje das famílias que não conseguem o acesso à educação inclusiva na esfera administrativa? O Poder Judiciário tem sido receptivo a esta demanda?
Pedro Hartung: Nós não atuamos diretamente em casos individuais, apenas em difusos, ou seja, buscando que todo o sistema de ensino regular acolham todas as crianças com ou sem deficiência. O Poder Judiciário tem a obrigação de fazer cumprir a lei. A escola é um direito de todas as crianças e adolescentes – com ou sem deficiência – mas não são poucos os casos, no entanto, em que o acesso a uma escola regular é negado a pessoas com deficiência. O Instituto Alana preparou um guia de como as mães, pais e responsáveis podem agir caso isso aconteça. Escolas regulares são obrigadas a matricular estudantes com deficiência, sejam elas públicas ou privadas, como estabelecido na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. A recusa da matrícula, inclusive, é considerada crime segundo o artigo 8º da Lei 7.853/89. Assim, o primeiro passo é conversar com a comunidade escolar e explicitar as ilegalidades presentes. Caso a escola se recuse a alterar sua postura, busque apoio de um advogado devidamente inscrito na OAB, ou se for o caso à Defensoria Pública ou ao Ministério Público.

Apostila de Cinema: Poderia falar um pouco do Decreto 10.502/20, visto pelas entidades de saúde coletiva como um retrocesso?
Pedro Hartung: O Decreto 10.502/20 é um retrocesso muito grande pois busca voltar a um modelo ultrapassado e segregador de escola especial, onde crianças com deficiência são separadas de crianças sem deficiência. O Brasil já tem um histórico muito positivo em educação inclusiva e o que precisamos é o investimento nesse modelo, melhorando as condições de práticas inclusivas nas escolas. Felizmente, o STF suspendeu este Decreto diante da inconstitucionalidade da sua proposta e retomando que escola é um lugar para todo mundo; deve ser um lugar de acolhimento e de desenvolvimento diversos e plural. Inclusão faz bem, como comprovado por inúmeras pesquisas, não só para o desenvolvimento das crianças com deficiência, mas também para as outras crianças que aprendem muito mais, inclusive a como conviver melhor com a diversidade natural da nossa sociedade.

Apostila de Cinema: Para finalizar, gostaria de perguntar como se opera a estrutura de apoio jurídico do Instituto e seus parceiros e como as pessoas interessadas podem também contribuir para torná-la mais forte.
Pedro Hartung: O Alana recebe denúncias de caráter coletivo e todo o Sistema de Justiça, suas instituições e agentes (Ministério Público, Defensoria, Procon etc.) podem ser acionados caso a escola se recuse a modificar sua postura contrária à lei e aos direitos das crianças com deficiência. Contudo, o primeiro passo é conversar com a comunidade e com a direção da escola, demonstrando as ilegalidades presentes para fazer valer os direitos da criança estudante. Caso a escola se recuse a modificar sua conduta, o Sistema de Justiça pode ser acionado por meio de um advogado devidamente inscrito na OAB, por Defensores Públicos ou por uma denúncia no Ministério Público do seu estado.

Ouça nosso podcast especial sobre “Um Lugar para Todo Mundo”:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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