Leia a crítica de “Nosso Lar 2”, em cartaz nos cinemas.
Sinopse: O médico André Luiz (Renato Prieto) junta-se a um grupo de anjos da guarda da cidade Nosso Lar, liderados por Aniceto (Edson Celulari), para a missão de ajudar a salvar projetos de vidas que estão prestes a fracassar. Juntos, eles se dedicam a cuidar de três protegidos cujas histórias estão interligadas: Otávio (Felipe de Carolis), um jovem com um dom incomum e uma vida promissora, mas que se desvirtua no caminho; Isidoro (Mouhamed Harfouch), líder de um centro de caridade, e Fernando (Rafa Sieg), empresário responsável pelo financiamento do projeto. Guiados pelo poder de transformação do amor e do perdão, os Mensageiros vão tentar resgatar essas histórias, até mesmo quando tudo parece perdido.
Direção: Wagner de Assis
Título Original: Nosso Lar 2: Os Mensageiros (2024)
Gênero: Drama
Duração: 1h 51min
País: Brasil
Menos Inocente, Mais Cinzento
Tendo um público-alvo engajado como a comunidade espírita, a grande surpresa do projeto envolvendo “Nosso Lar 2: Os Mensageiros” foi a demora na sua produção. Afinal, o longa-metragem original de 2010 – também escrito e dirigido por Wagner de Assis – havia sido um enorme sucesso já nas telas de cinema, com um público total de mais de 4 milhões de espectadores. Da era dos DVDs “pirata” que davam sobrevida aos lançamentos até sua inclusão no catálogo do serviço de streaming Star+, a trama sobre a passagem de André Luiz (Renato Prieto) ao umbral até ser resgatado é lembrada até hoje por quem se interessa de alguma forma com a religião popularizada no Brasil em figuras como Chico Xavier, autor do livro original psicografado.
As expectativas foram alcançadas e o novo filme chegou às telonas com uma plateia de meio milhão de pessoas já em sua primeira semana. Até esse texto ir ao ar, quase 900 mil pessoas assistiram ao lançamento que conta com braço do conglomerado Disney da Star Distribution Brasil. O salto tecnológico da época da produção do segundo filme talvez seja menos percebido, muito porque boa parte da narrativa se passa no mundo dos vivos (e dependa da interação das almas, em CGI que tende ao exagero). Se a parte final de “Nosso Lar” previa a chegada de uma quantidade incomum de almas pelo que o mundo conheceria como Segunda Guerra Mundial, há a preocupação nos momentos iniciais da continuação em ambientar o espectador na realidade em que uma virose vitimava muitos corpos, no que podemos presumir – ou criar a identificação – de que atrai para si a história contada para a contemporaneidade dos “tempos de pandemia” com a covid-19. Por sinal, esse é o primeiro filme brasileiro a debutar no topo da lista das bilheterias após o fechamento das salas em março de 2020.
A estratégia de “Nosso Lar 2” é fazer uma abertura de leque. Se no longa-metragem de origem acompanhamos a trajetória de André Luiz como um interessado, acreditando ser possível dar continuidade à sua realidade de médico de corpos no mundo das almas, aqui o foco são os protegidos dos mensageiros. No filme, Aniceto (Edson Celulari), lidera um grupo de espíritos mensageiros para cuidar de três almas cujos corpos estão prestes a se auto destruírem. Isidoro (Mouhamed Harfouch) é apresentado pelo viés do radicalismo, tirando da mesa seu filho por não orar antes da refeição; Otávio (Felipe de Carolis) tem sua mediunidade desenvolvida a partir do auxílio de Isidoro e não parece conviver com a tentação de explorar esse dom; e Fernando (Rafael Sieg) é o empresário que deseja investir na cura espiritual, mas acaba retomando a ideia de “suicida consciente” que marcou a passagem de André Luiz por umbral no primeiro filme.
Há momentos em que o discurso direto também nos remete à contemporaneidade, sobretudo com uso de palavras como “abuso” e “machismo”. Por outro lado, não se expõe com tanta clareza a ideia de mercantilização da fé ou de desvirtuamento do dom concedido aos tutelados pelos mensageiros, registradas nas tramas envolvendo Fernando e Otávio, respectivamente. Isso não é um problema do filme, é bom que se diga – somente uma característica. O texto de Wagner de Assis nomeia o que lhe interessa e concede ao espectador o benefício de problematizar (ou não) algumas atitudes a partir de sua visão de mundo. Todavia, fica claro que a gênese dos conflitos entre as personagens é o mau uso ou má interpretação daquilo que eles acreditam.
Essa escolha é fundamental para manter o universalismo e até mesmo fugir da conexão automática com a doutrina espírita de “Nosso Lar 2” no primeiro momento. Quem procurar outras opiniões sobre a obra encontrará de tudo, dos estudiosos da religião apontando grandes diferenças entre os escritos de Chico Xavier e o filme, até quem opte pelo caminho da “crítica engraçadinha de uma frase” do Letterboxd e de forma desrespeitosa reduza sua leitura a uma arte vazia, com único propósito de pregação. Essa disparidade de percepções é sinal de que a criação artística serve para mais de um propósito, o que é sempre bem-vindo.
Entretanto, o que podemos apontar é que, como consequência do leque ampliado de personagens e do afastamento do protagonismo de André Luiz, a ideia é criar “ilhas de história” com flashbacks da vida terrena que cruzam as tramas dos personagens. Isso gera dois incômodos: a frustração com quem imaginava que a continuação seria um desdobramento da rotina pós-umbral do espírito-autor do livro (ele, ao lado de Aniceto, são espécies de narradores transitórios); e a ausência da estrutura compacta que tornou “Nosso Lar” tão interessante para quem pouco sabe sobre o Espiritismo – sem que fosse necessário recorrer ao didatismo.
O mesmo não acontece aqui. Essa forma de colocar André e Aniceto à margem, faz com que eles surjam muitas vezes com o objetivo de interpretar o que está na tela. Isso gera bem mais diálogos expositivos e abandona a tão elogiada abordagem naturalista da primeira produção. Há falas que, de fato, soam como discursos com tons messiânicos e de pregação. A conexão entre os mundos, com o aparecimento dos espíritos na rotina mundana é a tônica, o que faz com que a experiência de assistir seja mais próxima de uma narrativa espírita dos anos 1990 e início dos 2000 – que sempre teve as obras de Chico Xavier como guia, mas era justamente o que “Nosso Lar” subverteu quando de seu lançamento.
Isidoro, por conta dessas tramas entrecruzadas, tem seu arco de redenção explorado com menos força do que poderia. Em sua autocrítica sobre como poderia ser melhor pai e marido, o espectador pouco contato tem com a família da personagem, o que faz com a carga emocional pareça atravessada. Já Vicente (Fabio Lago) aparece pouco, como se vivesse em um constante arco de desenvolvimento. O mesmo podemos dizer de Antônio (Nando Brandão), que surge como aprendiz de Vicente. Se apareceu uma intenção de introduzir ainda mais personagens (para outras produções, quem sabe?), não havia necessidade de explorar tantos, pois acabou que não se aprofundou em nenhum.
O cruzamento de narrativas acaba exigindo da obra recursos comumente usados, se socorrendo nos conflitos mais clássicos. Um deles é a vilania do espírito de Otávio tornando a tom da narrativa muito mais sombrio, sobretudo quando ele segue a tática de provocar pensamentos intrusivos nos filhos de Isidoro. É a mesma permissividade e adaptação que questionamos em “Turma da Mônica Jovem: Reflexos do Medo” (2024), uma vez que tudo o que envolve a produção é carregado de originalidade e personalidade, mas parece relativizado para se adequar ao público genérico (e não geral).
Ou talvez “Nosso Lar 2” tenha demorado tanto a ser produzido que tenha se desconectado um pouco com o filme original porque o mundo de hoje é muito diferente do de 2010. Há quem diga que não tardará para termos uma nova guerra de grandes proporções, por exemplo. Ou seja, um longa-metragem para tempos menos inocentes e mais cinzentos.
Veja o trailer: