Sinopse: Noventa por cento dos bens que consumimos são fabricados em terras distantes e trazidos até nós por navios. “O Custo do Transporte Global” é uma audaciosa investigação sobre o funcionamento e a regulamentação dessa indústria, assim como os impactos socioambientais ocultos.
Direção: Denis Delestrac
Título Original: Freightened: The Real Price of Shipping (2016)
Duração: 1h 23min
Gênero: Documentário
País: França | Espanha
Oceano Express
“O Custo do Transporte Global” é, até agora, o documentário mais conteudista da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. Dentro do recorte curatorial sobre Economia, trata-se de um filme que esgota seu tema. Portanto, para aqueles que pretendem aproveitar a janela de exibição da obra, é preciso se preparar para uma quantidade considerável de informações e dados. Ao mesmo tempo, o longa-metragem dirigido por Denis Delestrac nos dá a oportunidade de olhar para inúmeras questões dentro de um debate que parecia específico – abordagem fundamental para a sociedade globalizada e sistêmica a qual vivemos.
A edição do filme inicia com um tema que toca diretamente a todos aqueles que consomem produtos de outros países – digo, diretamente pela internet, já que quase nada atualmente abre mão da etiqueta “made in“. Como é possível, mesmo com o câmbio enlouquecido dos últimos meses, conseguirmos comprar em lojas virtuais do outro lado do globo, que nos enviarão um pacote como qualquer outra entrega nacional – e mesmo assim pagar muito mais barato por isso em comparação à loja da esquina? Essa é a porta de entrada para um elemento fundamental na complexa rede de produção e distribuição do planeta: a navegação mercante.
Pensado apenas na década de 1960, os containers assumiram de vez seus lugares na paisagem portuária. O mundo virou uma grande fábrica, onde não há limites para a aquisição de matéria-prima e insumos mais baratos. “O Custo do Transporte Global” traz, por exemplo, um terno que pode ser feito na China, mas seus botões serem importados do Vietnã, fabricados com plástico da Romênia. A divisão dos territórios em pólos é cada vez mais comum. No cinema brasileiro, dois filmes dos últimos anos tratam desse prisma. Um deles também faz parte da programação da Ecofalante, “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” (2019), de Marcelo Gomes – desde já um dos favoritos para a mostra Competitiva. Outro é o curta-metragem “Pega-se Facção” (2020), de Thaís Braga – apresentado na mostra Paralela do Festival de Taguatinga deste ano (e clicando aqui você terá acesso ao texto e a uma conversa em áudio e vídeo que inclui o curta). Os dois abordam o Pólo Têxtil do Agreste Pernambucano e as consequências precarizantes deste modelo econômico.
Os entrevistados do documentário de Delestrac concordam que, à primeira vista, a equação não fecha. Aos poucos, o filme vai nos entregando elementos de compreensão e vemos que a lucratividade vem ao custo de perda de dignidade e saúde da população e, claro, destruição do meio ambiente. Um dos fatores é o aumento das embarcações – a maior delas chega a quatrocentos metros de comprimento, capacidade para dezoito mil containers (cabe a Torre Eiffel inteira e ainda sobre espaço). Só este navio conseguiria transportar em uma viagem oitocentas milhões de bananas, o suficiente para dar uma a cada morador dos Estados Unidos e da Europa. A consequência é que as zonas portuárias das grandes e abarrotadas cidades já não comportam nem o tamanho e nem o fluxo desses gigantes. Aos poucos, novos territórios, pensados para esses novos tempos, ganham vida. No Brasil, o Porto do Açu é um exemplo.
Só que o tráfego de material constante geram consequências danosas. Dentro da água, ao ecossistema, com animais morrendo pela intensidade dos sons criados pelas embarcações. Fora dela, o aumento de doenças respiratórias, como a asma, na população que mora em raio próximo a esses portos movimentados. Além disso, aquela palavra mágica que vem acabando com qualquer conceito de dignidade laboral ressurge em “O Custo do Transporte Global“: a flexibilização. Os países que saíram na frente na “desobstrução” estatal aos impostos cobrados dos empresários e dos direitos sociais aos cidadãos, se consideram vitoriosos. Isso criou um sistema que amplia a relevância de determinadas bandeiras. Ali sabemos que o trabalho está em processo avançado de precarização.
A quantidade de informação que precisa ser atirada ao espectador faz com que alguns aspectos não possam ser explorados, por falta de tempo. Essa humanização do funcionário das embarcações passa rápido, com o exemplo de um homem que está sempre embarcado. Não há datas comemorativas, nem rotina para aqueles que precisam prestar serviço nestes navios. A cada três dias, um carregamento de carga gigantes naufraga em algum oceano pelo mundo. Mas isso não vira notícia, não choca. As vítimas são poucas e invisíveis – ao contrário de acidentes envolvendo navios de cruzeiro, por sinal operado pelas mesmas empresas.
Nesse entendimento de que a sociedade é um sistema, há espaço no documentário para trazer fatos que provavelmente não são de conhecimento de parte do público. A possibilidade da alimentação orgânica se firmar como mercado bem-sucedido está diretamente ligada à popularização dos containers, por exemplo. Já a navegação mercante, responsável por um rastro de vazamento de óleo que bate recordes a cada ano, não faz parte do Protocolo de Kioto. Essa atividade surge como um inimigo invisível. Aliás, está mais para anti-herói, já que ocupa uma posição nas nossas relações de consumo que o torna imprescindível. Um clássico caso de algo que precisa ser repensado, pois já não sabemos viver sem.
A saída passa por frear o atual consumo desenfreado. Compramos porque está barato, porque usaremos só uma vez ou até mesmo porque “pode ser que a gente precise”. Não taxamos os ricos e a eficiência de algumas nações na Economia começam a guardar uma relação direta com a ultra-tarifação dos mais pobres (e, olha ela, flexibilização de recolhimento em relação aos empresários). Afinal de contas, a economia não pode parar. As taxas de consumo precisam sempre olhar para cima. Mas, por que isso? “O Custo do Transporte Global” nos sufoca e não nos permite refletir na experiência de assisti-lo. Todavia, basta encerrarmos a sessão que todos aqueles assuntos vêm na nossa mente. E a conclusão é sempre a mesma: são muitos os problemas e não estamos nem aí.
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