Sinopse: Em “O Dilema das Redes”, especialistas em tecnologia e profissionais da área fazem um alerta: as redes sociais podem ter um impacto devastador sobre a democracia e a humanidade.
Direção: Jeff Orlowski
Título Original: The Social Dilemma (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 34min
País: EUA
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O documentário “O Dilema das Redes” chega na Netflix na semana em que uma parte do país (calculo que pouco mais de um terço) segue cumprindo as recomendações de isolamento social. Perceba que após “recomendações” não insiro a palavra “oficiais”. Porque não há mais oficialidade, não há mais instituições sólidas hoje no mundo. Há as redes sociais e um mundo próprio em cada um de nossos aparelhos. Poderia falar que a recomendação é da OMS, mas já não poderia falar mais que é do governo. O Presidente da República do Brasil nunca, de fato, disse que a melhor opção era se manter em casa. Ele é filho das possibilidades que as ferramentas tecnológicas, ou algoritmos de indução de consumo, permitiram. Citar Jair Bolsonaro no primeiro parágrafo da crítica não é militância rasa – ele é destaque nessa produção originalmente distribuída pela plataforma, apresentada no Festival de Sundance 2020, nas estreias fora de competição.
O longa metragem de Jeff Orlowski faz um cerco completo do tema que pretende abordar. Traça um caminho de apresentação do problema e chega nas graves consequências do sucesso das empreitadas do Vale do Silício – com espaço para eventual soluções. Não teríamos tanto a acrescentar a não ser provocações paralelas ao filme – e talvez seja isso que façamos daqui em diante. Trata-se de um documentário que, caso sua intenção ao buscar esse texto é encontrar motivos para assisti-lo, antecipamos seu trabalho e falamos: assista. Quanto mais rápido, melhor. Como linguagem, o cineasta insere algumas partes encenadas para quebrar e ilustrar os depoimentos. Boa parte dos testemunhos são de ex-funcionários com altos cargos estratégicos nas maiores empresas do setor. Uma mistura de arrependimento com medo de punições desde que o Congresso dos Estados Unidos passou a investigar a atuação do Facebook e sua influência nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016. Ano passado, a Netflix já havia lançado “Privacidade Hackeada” (2019), outra obra que segue o mesmo caminho, focado no escândalo da Cambridge Analytica. Dois filmes que podem funcionar em conjunto, sendo este aqui muito mais desesperador em seu discurso – se aproximando do “estilo Black Mirror” que muitos adoram citar (é claro que retornaremos à série ainda).
Sobre essas intervenções ficcionais, elas começam a funcionar melhor na segunda parte de “O Dilema das Redes“. Parecem mal engendrada à primeira vista, como se estivéssemos diante de uma peça educativa. Ultrapassado esse estranhamento, torna-se mais eficiente. O grande dilema de falar sobre o longa-metragem é que se torna inevitável tratar do problema sem ser parte dele. Não resta mais esperança de que conseguiremos nos livrar desse estilo de vida, em total dependência dos smartphones. Provavelmente você conhece alguém que era o último pilar anti-tecnologia, que se negava a ter um perfil em rede social ou telefone moderno – e dificilmente se manteve com essa filosofia nos últimos dois anos. Ao final da obra, ficamos com um endereço do site oficial do filme, onde eles trazem outros dados e se dispõe a fomentar um debate. Porque, no final das contas, o que nos falta é isso: a troca. Hoje recebemos e consumimos por nós mesmos.
Todavia, nesse ponto, é importante frisar um dos momentos que mais chamam a atenção no longa-metragem. A relação de consumo que, aparentemente, seria dos usuários com as redes, na verdade é das redes com as empresas que nela anunciam. E nós somos os produtos. Na Mostra Ecofalante trouxemos um compilado de textos que discutia o consumo e como bens vitais vêm se transformando em commodities. Só que, agora, nós somos o produto. Com potencial risco de esgotar nossa existência. A tentativa de uma regulamentação do setor é válida e precisa ocorrer de forme urgente. Quando falamos do pessimismo de não vislumbrar uma solução, não é apenas baseado no fato de estarmos dentro do sistema neste momento – produzindo esse texto. É que os lobbys pela auto regulamentação são muito fortes na economia dos Estados Unidos – onde essas empresas estão alocadas. Em “Beleza Tóxica” (2019), por exemplo, destrinchamos como as indústrias de cosméticos e alimentos há décadas nos fornece veneno sem que a lei alcance medidas preventivas.
Dentro das provocações que ultrapassam a experiência de assistir a “O Dilema das Redes”, podemos apontar nossa própria relação com o audiovisual e como essa sensação constante de distopia abriu, de certa maneira, nossas mentes. O filme nos traz em menções duas obras do final do século passado. “O Show de Truman” (1998), de Peter Weir, já havia sido objeto de críticas favoráveis à época. Hoje é possível enxergar seu potencial de mensagem, principalmente na leitura de que – na escala de nossos aparelhos eletrônicos – vivemos alguns bilhões de shows igual ao dele. O segundo, mais óbvio, é “Matrix” (1999), de Lilly Wachowski e Lana Wachowski. Uma produção que gerou muito embate, várias discussões e buscas nas bases filosóficas e tecnológicas seus significados. E que atualmente parece muito simples, por conta da nossa incorporação à proposta de existência do seu roteiro cada vez menos metafórico.
Essa confirmação de que estamos seguindo o caminho da destruição fez da série “Black Mirror” uma mistura de entretenimento com leitura profética. Já estamos quase uma década a frente do segundo episódio da primeira temporada, chamado “Fifteen Million Merits“. Nele, o protagonista interpretado por Daniel Kaluuya troca sua força de trabalho por uma moeda virtual, misturando os hábitos de consumo tenológicos ao que antigamente chamávamos de reais. Uma xícara de café e créditos para gastar no Candy Crush podem ser monetizados de forma similares e basta assistir a algumas propagandas de trinta segundos para obter outros ganhos. Ou, como acontece em qualquer sociedade baseada na desigualdade, recuperar prejuízos. O que antes era uma obra audiovisual com uma das possibilidades de futuro próximo, agora é encarado como uma certeza.
O algoritmo joga com o nosso tempo. Em outro texto nosso, sobre o filme “Ladrões do Tempo” (2018), tratamos sobre essa sensação sufocante de que sempre precisamos de mais – e mencionamos como o sono é nossa última barreira (e foi a falta dele – ou falsa sensação de falta – que me fez assistir “O Dilema das Redes” às 5 da manhã). Se não trabalharmos internamente essa administração da própria vida, chagaremos ao colapso. Há, no documentário, falas de Jaron Lanier, que muitos conhecem por suas publicações e vídeos de recomendação de exclusão das redes sociais. Ele mesmo admite aqui que isso é impossível para grande parte de nós. Por sinal, essa relação que temos de abandono das redes quando observamos que elas nos fazem mal para retornamos por necessidade em algum momento, é uma solução ainda pior. Nos traz picos de consumo, igual a qualquer outro entorpecente, o que – no final das contas – pode ser ainda mais danoso.
Percebendo isso, as empresas melhoraram seu algoritmos. Não ache que foi por maré de sorte que você começou a ganhar nos aplicativos de jogos quando ficou alguns dias sem usá-lo porque estava viajando. Nem que o mundo parece ter andado mais rápido naquelas duas horas que você abandonou seu celular porque estava no cinema e, ao tirá-lo do bolso, tinha muitas notificações. Tudo isso é de propósito. Então, chegamos nas medidas reais que o filme nos traz: desligar notificações e estabelecer horários offline. O longa-metragem tem um peso cultural importante, por chegar na casa das pessoas pela Netflix (mesmo que seja um corporação totalmente inserida no sistema, com os seus algoritmos) e medidas simples como essas já se revelam minimamente salutares.
Ocorre que há uma camada mais profunda, aquela o filme não atingirá e que precisamos lidar bem com ela. São aquelas pessoas cujos algoritmos catapultaram para fora da mídia hegemônica e do mundo científico. Um grupo cada vez maior que define os rumos das nações ditas desenvolvidas e que nos transformará em um planeta regido pela autoritarismo, onde a democracia periga ser uma vaga lembrança. No que há de mais atual em “O Dilema das Redes“, traça uma relação entre manifestações negacionistas sobre a pandemia do coronavírus e os movimentos anti vacinas. Essa semana foi publicada notícia de que, no Rio de Janeiro, as metas de vacinação não foram batidas nem em 50% (deixo link da agência oficial do governo, por sinal). É uma guerra pela desinformação que, absurdamente, não encontra resistência total da imprensa.
Um grande exemplo no Brasil é a forma como o UOL e a PagSeguro resistem à campanha de desmonetização do canal de Olavo de Carvalho no YouTube pela iniciativa chamada Sleeping Giants Brasil (mencionada nessa reportagem). Talvez fosse necessário um outro documentário sobre esse novo dilema: o da mídia. Perdida entra derrubar a indústria das fake news e entender a demanda por ela absorvida. Não querendo se opor frontalmente a personalidades que afirmam categoricamente quererem destruí-la. Pior. Convidando as mesmas para debater sob a desculpa de polarização ideológica, como faz a sucursal brasileira da CNN. Aqui reside um ponto nevrálgico da questão de abandonar ou não as redes sociais. Não devemos abandonar enquanto há possibilidade de reverter o jogo. As eleições de 2018 no Brasil foram vencidas nesse território e até hoje a oposição a Bolsonaro não entendeu a dimensão e a importância de se adaptar ao formato. Sim, se adaptar. Quebrar o sistema não é mais uma opção.
Na bolha da esquerda o assunto veio à tona quando um grande ator político, apalavrado há um mês para participar de um popular podcast chamado Lado B do Rio, de última hora optou por participar de uma live de uma candidata. Um evento com alcance dez vezes menos do que aquele o qual deu bolo. Isso levou a um interessante episódio do programa sobre militância nas redes com o antropólogo e podcaster Orlando Calheiros (que pode ser ouvido clicando aqui). A percepção de como as novas formas de produção de conteúdo se inserem nos chamados hábitos inconscientes apresentados pelo filme precisa ser absorvida, sob pena de, quem defender a extinção dessas plataformas ou censura a elas mais adiante, ser taxado de autoritário por quem – hoje – pratica a intolerância na vida real e é vendido como messias virtualmente. O caminho para uma guerra civil em território estadunidense não soa mais tão absurdo e as limitações de trânsito causada pela crise sanitária podem ter acelerado muitos processos.
Na mesma semana em que ele entra no ar, a Netflix é alvo de ataques pela maneira como preparou a publicidade em torno do filme “Mignonnes” (parece que o título “Lindinhas” será oficializado no Brasil). Acusado de erotizar crianças, quem assistiu a obra entende que, pelo contrário, há uma importante crítica sobre o assunto. Principalmente sobre o viés reacionário de algumas religiões. Está na lista para ser visto e com certeza aparecerá na Apostila de Cinema em breve. Em contrapartida, a ministra Damares Alves abriu guerra contra o serviço de streaming (leia a notícia aqui), seguindo as diretrizes da direita norte-americana. Todavia, ao assistir “O Dilema das Redes” fica a sensação de que há muito mais coisa que eles não querem que você consuma por lá. A caça às bruxas não é mera coincidência.