Sinopse: “O Divino Baggio” é um relato dos vinte e dois anos de carreira do craque italiano Roberto Baggio, incluindo a difícil estreia nos campos e os conflitos com alguns de seus treinadores.
Direção: Letizia Lamartire
Título Original: Il Divin Codino (2021)
Gênero: Drama | Biografia
Duração: 1h 31min
País: Itália
Nem Tudo é Vitória
Uma das principais estreias da Netflix esta semana, o italiano “O Divino Baggio” refaz os passos do jogador italiano mais amado do Brasil, conhecido por muitos como aquele que perdeu o pênalti na final da Copa do Mundo. Apesar do chapa-branquismo da cinebiografia, certas escolhas da diretora Letizia Lamartire, em seu segundo longa-metragem, tentam fugir da lógica panorâmica e informativa do subgênero dramático. Algumas funcionam e outras nem tanto. A questão é que, parte das dificuldades encontradas para se estabelecer uma narrativa se dão de plano, o que pode afastar os mais ansiosos.
Se valendo da estrutura de três atos, o filme faz um caminho parecido com “Steve Jobs” (2015), do cineasta Danny Boyle e que – no momento desta publicação – também está disponível no catálogo da mesma plataforma de streaming. Ou seja, fixa a trama em três pontos da trajetória do protagonista, interpretado por Andrea Arcangeli. Todavia, a primeira parte não articula bem essa intenção. Dá a entender que criará um longo arco, quando, na execução, insere momentos da vida de Baggio através dos diálogos e as sempre utilizadas reportagens de TV.
Neste primeiro momento, um prólogo – que voltará sempre que a história precisar – mostra o menino Roberto chutando uma bola, no velho sonho de garotos que vivem em países onde o futebol é, além de popular, uma importante ferramenta de ascensão social. O antagonista velado de toda a obra, transita a partir do descrédito. Seu pai, Florindo (Andrea Pennacchi) se ergue como um incentivador reverso, por sempre questionar as escolhas do filho. É assim que o conhecemos quando o biografado, já com dezoito anos, é vendido para a Fiorentina em uma transação milionária.
O espectador brasileiro encontrará em “O Divino Baggio” duas relações com a historiografia do nosso futebol. Para além do mal batedor de pênaltis, conhecerá neste primeiro momento um atleta promissor, chamado pela imprensa especializada de fenômeno. Seu histórico de lesões seria crucial para que a carreira virasse uma montanha-russa de rendimento, bem parecida com a vida de outro Fenômeno, Ronaldo Nazário – que esteve na mesma Copa do Mundo de 1994 como o novo jovem promissor, em um ciclo de ascensão e queda de ídolos típico de um esporte feito para mexer com as emoções do povo.
A segunda relação será com Romário, outro craque que estava na mesma competição e saiu como o herói do time vencedor. Não apenas porque sucedeu Baggio no prêmio da Bola de Ouro, que o italiano havia vencido em 1993 – mas porque divide com ele a frustração de nunca mais ter a chance de jogar um Mundial. O segundo ato do filme nos coloca no período desta Copa. Aqui o longa-metragem ganha força, não apenas por lidar com uma memória mais fixa na mente dos apaixonados por futebol, mas pela qualidade de reprodução. Não das partidas e movimentos dos atletas, esses ainda encontram uma barreira antinaturalista, que inclusive foi assunto de nossa entrevista com o diretor Roberto Studart, quando do lançamento de “O Último Jogo” (2020).
Até por isso, Lamartire passa boa parte do tempo evitando essa formatação. Nisso a obra é eficiente, já que atinge uma autonomia em relação às sequências dos jogos, valorizando em parte o drama. Os saudosistas gostarão de ver a fidelidade com a qual os elementos marcantes daquele período se apresentam. Experiência que, pessoalmente, ganha dimensão por ter sido 1994 a minha primeira chance de acompanhar uma Copa.
Outro expediente que demarca os três atos são as escolhas de novos clássicos dentro da trilha sonora. No início da carreira de Baggio, ouvimos Vasco Rossi com “Vado Al Massino“, um pop rock de sucesso na Itália, na esteira das influências do new wave nos anos 1980 – e que na América Latina virou até a série documental “Quebra Tudo” (2020), que a Apostila de Cinema já tratou em texto. No segundo ato, o rock alternativo além-mar de Oasis e Smashing Pumpkins são as músicas que acompanham o tetracampeonato do Brasil, pelo olhar dos derrotados.
É aqui que surge um antagonista mais direto e pontual – o acaba ampliando a vantagem na luta por melhores momentos de “O Divino Baggio”. Em uma campanha difícil, quase eliminados na primeira fase, Arrigo Sacchi (Antonio Zavatteri) é apresentado como um treinador que não gosta de ter desafiada sua posição de poder. Quase como um representante de parte dos problemas de relacionamento pelos quais o protagonista enfrentou ao longo da carreira – fechando as portas que as lesões não faziam.
Na melhor cena do filme, o técnico usa um discurso motivacional com foco direto em Roberto, a quem olha fixamente, com um uso de palavras que valem para todos os outros jogadores e para a Itália inteira. Usa a tradição futebolística do país com o uso do “futebol reativo” para demonstrar que o talento de Baggio o torna mais um patinho feio do que um ídolo por ali.
Veja o Trailer:
Já no ato final, “O Divino Baggio” nos coloca no início do novo século, ao som de The Black Keys – apesar da liberdade poética que leva a um erro musical histórico, já que a canção escolhida, “Run Right Back“, fazer parte do álbum El Camino, lançado apenas em 2011. Aqui somos levados ao período que definiu o fim de sua carreira. Se não tão envolvente quanto o ato anterior, é o momento em que conseguimos absorver muito, mesmo com poucas sequências. Estamos diante de um atleta que, cansado de ter sua vaidade atacada, a deixará de lado para defender o modesto Brescia – com sucesso.
Revisita seus próprios traumas e permite encarar mais um desafio “impossível” na tentativa de fazer jus à própria carreira. Bem parecido com a maneira como Romário lidou com a Copa do Mundo de 2002. Como sabemos, nem Baggio defendeu a Itália e nem Romário o Brasil. Felipão pagou para ver e preferiu apostar em Ronaldo e não levar dois jogadores com histórico de contusões recentes para a mesma posição. Novamente, as histórias se cruzaram.
Se pensarmos que a perspectiva que sempre esperamos é a das vitórias dos biografados, o filme ao sair, mesmo que ligeiramente, esta lógica. Uma forma de humanizar um personagem que foi por certo tempo punido por errar – e tendo na canção “L’uomo Dietro il Campione“, de Diodato (feita para o longa-metragem), uma mensagem de que esta lição a partir do fracasso também é importante.
Com o próprio Roberto Baggio fazendo a consultoria do roteiro, não poderíamos esperar tantos contrapontos à sua narrativa. Há uma forma de trazer seu vínculo com o budismo e um constante exercício de desapego que – na prática – o protagonista parece nunca conseguir exercer. Aliás, esta relação religiosa nos leva a uma figura de outro esporte: Nico Rosberg, o único piloto de Fórmula 1 a tirar um campeonato de Lewis Hamilton pilotando uma Mercedes. E que, logo depois, se aposentou, fazendo muitos cogitarem a motivação religiosa da decisão.
Quem sabe a Netflix inaugura um filão de releituras de nomes recentes do esporte e também nos explica melhor essa história. “O Divino Baggio” poderia ser um documentário formulaico e se transformou em uma ficção chapa-branca. Porém, está longe de cair no limbo dedicado a essas narrativas – mas somente para quem possui interesse prévio no assunto.
Ouça L’uomo dietro il campione, de Diodato: