Sinopse: Filmado em locações no Harlem e nos jardins históricos de Monet em Giverny, “O Documento Giverny (Canal Único)” é um poema cinematográfico multicolorido medita sobre a integridade corporal e o virtuosismo criativo das mulheres negras.
Direção: Ja’tovia M. Gary
Título Original: The Giverny Document (single Channel) (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 42min
País: Estados Unidos
A Vida na Galeria
Não há como não assistir “O Documento Giverny (Canal Único)” e não se lembrar das manifestações de eurocentrismo estrutural (para ser bonzinho com os críticos) que acompanharam o lançamento do videoclipe “Apeshit“, que Beyoncé e Jay Z, configurados como The Carters, lançaram há pouco mais de dois anos. Não apenas o racismo velado. Inclui-se também a ignorância de quem está longe de defender ideias intolerantes e preconceituosas, mas que pararam na visão paralisante do virtuosismo da arte, da classificação européia de alta cultura, ideais de beleza e toda essa baboseira elitista que perdurou no ensino acadêmico – e, por consequência, nas análises críticas.
A direção de Ja’tovia M. Gary, portanto, propõe uma integração e monta sua obra com entrevistas de mulheres negras de todas as idades nas calçadas do Harlem e lindas composições visuais que as colocam ocupando um lugar sagrado na (ar)rota do circuito da AArte+: os jardins de Monet, em Giverny. Aqueles que o pintor revisitou ao longo de todas as fases de sua carreira e que sofreram reconfigurações por conta de seus estados de espírito e problemas de saúde. Não há porque cancelar o Monet e nem questionar um mercado que lhe valoriza e etiqueta com oito ou nove dígitos suas obras. Só que não faz mais sentido nenhuma ruptura na arte e a confluência das manifestações é fundamental para que não se provoque resistências a linguagens. Mantém essa diferenciação é apenas um esforço desnecessário para fazer valer um argumento, enquanto vivemos em um mundo à beira do colapso.
Por isso, “O Documento Giverny (Canal Único)” é tão marcante, talvez uma das produções mais impactantes como mensagem entre as assistidas no Festival Ecrã. Das expressividades corporais e verbais de mulheres que clamam por um desejo de viver – com plenitude; à crítica por imagens de arquivo ao exotismo pelo qual as manifestações culturais dos negros era vista por quem se achava conhecedor do assunto. Usando a pixelagem (mais uma obra da mostra que se vale da linguagem), traz o que seria uma tradição carnavalesca na França e seus reflexos na objetificação de corpos no Haiti. Mas a edição do filme de Gary ganha força nos depoimentos. Principalmente sobre a falta de segurança de transitar pelas ruas da cidade mais cosmopolita do planeta e a necessidade constante de se cuidar – e cuidar uma das outras. A grande arte de viver.
Na montagem, dois grandes artistas se revezam na materialização do dom. Louis Armstrong surge em uma versão de baixa rotação da popular canção francesa “La Vie en Rose”, mostrando que a ressignificação a partir da apropriação de fazeres artísticos não é exclusividade dos nossos tempos. Outro pilar da aludida Grande Arte Européia, Edith Piaf, resgatada para dividir as honras. Mas o destaque é a apresentação de Nina Simone, cantando “Feelings”. Não apenas porque o magnetismo de sua presença aparece na tela (ao contrário de Louis, que nos vem apenas pelo som). Mas é justamente por ser Nina, um talento incompreendido – e boicotado pelo seu ativismo – que passou o inverno de sua vida justamente na França. Executando uma canção composta por um brasileiro (Morris Albert ou Maurício Alberto Kaisermann) regravada por muita gente entre as décadas de 1970 e 1990. Até que se descobriu que era um plágio – de uma canção francesa!
Não há rupturas e afastamentos totais na arte, assim como não há na sociedade. Vejamos um dos testemunhos das mulheres do Harlem, que toca em uma questão que já trouxemos em outros textos: a religião. Em “Deus” (2019) falamos da forma engessada que tornou o Catolicismo incongruente em relação aos anseios dos novos fiéis. Já em “Azogue Nazaré” (2019), como a personagem Darlene, esposa do protagonista, vê uma oportunidade de se conectar com a coletividade, de desenvolver um senso de comunidade. É neste ponto que “O Documento Giverny (Canal Único)” toca. A ideia da religião como uma âncora e, curiosamente, trazida pela única entrevistada que diz não sentir essa insegurança nas ruas que todas as outras disseram ter.
Como se não fosse possível ir além do deslumbramento visual e da poética, o filme segue ampliando horizontes. Vale menção especial a uma cena muito significativa, onde Ja’tovia trata do apagamento das mulheres negras fazendo esse trabalho de edição nos jardins de Monet. Sobra tempo, ainda, para trazer falas sobre a carência do conhecimento acerca da própria história. Por fim, de adicionar uma consequência prática direta, a partir de imagens de abordagens policiais violentas pela polícia dos Estados Unidos. “O Documento Giverny (Canal Único)” é quase uma lista de profundos temas que precisam constantemente serem trabalhados. O que acaba tornando a obra uma manifestação artística que precisará constantemente ser revista.
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