Sinopse: Em “O Fim da Carne”, o cineasta Marc Pierschel embarca em uma jornada para descobrir que efeito um mundo pós-carne teria no meio ambiente, nos animais e em nós mesmos. Ele conhece Esther, o Porco Maravilha, que se tornou um fenômeno da internet; conversa com pioneiros que lideram a revolução vegana na Alemanha; visita a primeira cidade totalmente vegetariana da Índia; testemunha animais de fazenda resgatados fruindo sua recém-encontrada liberdade; observa os inovadores em alimentos do futuro, que produzem carne e laticínios sem os animais, colhem “bacon” do oceano e muito mais.
Direção: Marc Pierschel
Título Original: Eine Welt Ohne Fleisch (2017)
Duração: 1h 34min
Gênero: Documentário
País: Alemanha
Mais do que Escolhas
Uma das grandes dúvidas das recentes mudanças da sociedade é se a dieta vegetariana será um modismo ou se estamos testemunhando uma relevante mudança cultural no planeta. “O Fim da Carne“, documentário alemão dirigido por Marc Pierschel que faz parte da programação da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, tenta trazer o máximo de informações e projeções sobre o que seria um mundo onde a proteína animal estaria, definitivamente, em declínio. Não apenas por conta das pessoas que optam por não mais consumir carne – mas com forte influência daqueles que, por curiosidade ou mais preocupados com a alimentação, cada vez mais procuram alternativas.
Antes de seguir, vale frisar que alimentação é um dos grandes problemas da contemporaneidade. Por mais que o assunto do filme tenha um foco – e um foco que não poderia jamais me opor por ser uma das pessoas que, há alguns anos, não consome carne – boa parte dos riscos do processamento de comida é válido para os substitutos da proteína animal. Não há salvadores nesse meio, mas é difícil não concordar que a agropecuária é, sim, uma vilã. Aceite que – para muitos – ainda é um mal necessário, mas os impactos na desregulação ambiental e nos gastos com saúde são enormes. O que o longa-metragem tenta fazer é mostrar como a indústria, atualmente, ataca em duas frentes: segue com sua produção de carne e suas táticas para estimular o consumo em alta; ao mesmo tempo em que adere a essa nova forma de por comida na mesa.
Bife, hambúrguer, linguiça, salsicha. Produtos que provocam distanciamento sobre o que eles são. Não seria preciso apelar para o sentimentalismo ou argumentar que muitas pessoas mudariam sua dieta se atuassem na produção do seu próprio alimento. Isso “O Fim da Carne” também abarca, ao mostrar como não há abatedouros perto dos grandes centros urbanos. Apenas a substituição das palavras, para maquiar que estamos comendo vacas, porcos e galinhas, já é o suficiente para manter os altos ganhos das corporações. Quando conseguimos individualizar o animal (e há o curioso caso de Esther, uma porca gigante que faz parte dos bichos celebridades da internet) boa parte do ímpeto em comer carne diminui.
Só que a questão cultural é muito mais complexa do que nossas interações cotidianas conseguem alcançar. Em uma das partes mais interessantes do documentário, nos é mostrado como a visão de respeito total aos animais na Índia – onde 80% da população se declara hinduísta – é, em boa parte, romantizada. Além disso, a globalização e potencialização do trânsito de pessoas e coisas, tem feito com que a juventude do país passe a consumir carne. O sonho de uma Revolução Vegana está longe de acontecer – até mesmo em uma nação vista como símbolo, onde desrespeitar animais é crime de Estado. Lá, menos de 40% do seu povo é vegetariano.
Todavia, aos poucos supostamente vamos destruindo as amarras da indústria e, a partir de informações, mudando nosso hábitos por nós mesmos. O filme traz previsões como a salsicha ser eleita a nova vilã, tal qual o tabaco foi há alguns anos (e na Alemanha, local de produção da obra, esse alimento tem grande força cultural). Há quem diga que a palavra açougue se torne politicamente incorreta. Isso nos leva à necessidade que muitas pessoas têm de – na transição para o vegetarianismo – se valer da simbologia carnista de outrora. Aqui mesmo no Brasil temos uma rede de lojas chamada Açougue Vegano. Pratos recebem nomes que o vinculam à indústria da carne (os mesmos já citados, como bife e hambúrguer). Quimicamente, tenta-se recriar os aromas do cozimento ou da fritura dos bichos. Acaba que, no final das contas, não destruímos amarras de indústria alguma, apenas atualizamos a demanda.
Um tiro certeiro de “O Fim da Carne” é trazer esse assunto. Nessa busca referencial (como se brócolis ou lentilha fosse comidas de outro planeta) abrimos espaço para que as mesmas empresas de sempre – vinculadas á agropecuária – lhe oferecem a alternativa vegetariana. Aqui no Brasil temos visto a popularização do leite de soja, que no supermercado sai muito mais em conta do que outras bebidas vegetais. Percebam que seu preço aumenta e diminui sempre na mesma proporção do leite de vaca. A explicação está no rótulo: a mesma empresa que te vende um, vende o outro. Não há interesse em pulverizar uma demanda. No Capitalismo, a meta é dividir para conquistar. Não à toa, no mundo vegano, a moda é a “carne” do futuro e o “queijo” de levedura. Mas o documentário traz opções ainda não cooptadas pela indústria, bem mais naturais, nutritivas e até mesmo saborosas. Resta saber se será Davi em meio a Golias.
O ponto positivo é que a migração da indústria revela uma tendência a não ser, o vegetarianismo, uma moda passageira. Isso traz benefícios à sociedade e ao planeta. A diminuição no consumo da carne (responsável por 70% de toda a emissão de poluentes relacionados à alimentação) pode trazer um meio ambiente mais equilibrado. E pessoas mais saudáveis – com menos incidência de câncer e infarto do miocárdio – tira um pouco a pressão nos hospitais e centros de pesquisa, permitindo acesso melhor a tratamentos. Ser otimista nunca combinou comigo e ainda acredito que veremos uma mudança de jogo. Ao mesmo tempo, torço para que a haja um país que adote, espontaneamente ou por força de circunstâncias econômicas (não sejam inocentes, só assim a coisa anda), uma dieta com muito pouca carne – e tenha reflexos tão positivos na comparação com outros que esse assunto se torne inevitável.
Enquanto isso, as políticas de Estado sempre privilegiarão o agronegócio. É uma classe social muito poderosa, não só financeiramente como territorialmente. Seus grandes líderes estão há décadas nas entranhas do poder. Isso não impede que avanços nos defensores das causas sejam identificados. Na semana da publicação desse texto, por exemplo, o Senado Federal aprovou uma lei que aumenta a pena para quem maltratar cães e gatos.
Enquanto isso, “O Fim da Carne” traz um trecho final que aproxima a causa animal das lutas por direitos sociais. Testemunhos de pessoas que pregam a filosofia da união total entre seres, inclusive desenvolvendo uma concidadania dos animais. Começariam pelos domésticos, garantindo que eles tenham representantes de seus interesses em órgãos públicos. Pode parecer um pouco utópico, mas ao encerrar com cenas em um santuário de animais vemos que o movimento a favor do respeito e da defesa da liberdade dos bichos é uma realidade. Está aqui um debate que sofre muito com essa tendência do mundo da lacração e do cancelamento em polarizar discursos. Há um meio-termo enorme entre a filosofia (e não apenas a dieta) totalmente vegana e o carnismo puro, de chapéu, bota e calça de couro. Você não precisa escolher lados – e há um planeta inteiro de liberdade quando você se livra dos seus algoritmos de consumo.
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