O Homem que Vendeu sua Pele

O Homem que Vendeu sua Pele Crítica Filme Pôster

Sinopse: Em “O Homem que Vendeu sua Pele”, Sam Ali, um jovem sírio sensível e impulsivo, trocou seu país pelo Líbano para escapar da guerra. Para poder viajar para a Europa e viver com o amor de sua vida, ele aceita ter suas costas tatuadas por um dos artistas contemporâneos mais cultuados do mundo, transformando seu próprio corpo em uma obra de arte de prestígio. Sam, entretanto, percebe que sua decisão pode significar qualquer coisa, menos liberdade.
Direção: Kaouther Ben Hania
Título Original: الرجل الذي باع ظهره | The Man Who Sould His Skin (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 44min
País: Tunísia | França | Bélgica | Alemanha | Suécia | Turquia

O Homem que Vendeu sua Pele Crítica Filme Imagem

Ainda Somos os Mesmos

Contrariando algumas expectativas, a produção da Tunísia “O Homem que Vendeu sua Pele” (assim como o chinês “Better Days“) apareceu na lista de indicados ao Oscar de 2021, mesmo sem parecer fazer muito alarde. Apresentado na mostra competitiva Orizzonti do Festival de Veneza 2020, onde venceu dois prêmios, a obra dirigida por Kaouther Ben Hania possui uma narrativa simples, um flerte com o fantástico, para traçar um paralelo de avanços nos debates sobre a sociedade que revelam que saímos pouco do lugar. Girando em volta dos mesmos problemas, criados por nós mesmos.

Sam (Yahya Mahayni) aparece em um presídio no prólogo do longa-metragem. Depois, conhecemos sua origem, na paixão por Abeer (Dea Liane). Um amor escondido, fruto de uma realidade em que a mulher não tem direito de escolha. No trem, eles não podem se tocar e em casa um homem que trabalha na embaixada da Síria na Bélgica irá lhe visitar enquanto pretendente. Antes de fugir para o Líbano, ficamos sabendo que a região a qual a história começa é Raqqa (que vimos no documentário “9 Dias em Raqqa” que foi o epicentro da ascensão do Estado Islâmico no país e sua consequente guerra civil).

Mais adiante, como parte do processo que promoveria sua liberdade, o protagonista aceita se tornar um objeto, ser tatuado no corpo por um artista. A intenção é ir atrás da mulher, agora casada com alguém que não queria. O tatuador é Jeffrey (Koen De Bouw), que gosta de se apresentar como um Mefistófeles moderno. Na Idade Média, a ideia por trás do nome remete a uma das encarnações do diabo. Com o poder de seduzir usando outros corpos humanos, sua aparição mais popular foi em “Fausto”, obra-prima do alemão J.W. Goethe. É a velha história de “vender a alma ao diabo.” No caso de Sam, a pele.

A chegada de Jeffrey carrega consigo uma mudança de ritmo no filme de Hania. Ao atravessar uma galeria de arte esquisita, com dupla personalidade, podemos observar uma arquitetura industrial misturada a quadros de pintura clássica. O mesmo se reflete na trilha sonora, que se ergue em uma construção aparentemente moderna, mas usando instrumentos também da música clássica. Esse conflito do longa-metragem é constante, porque não há nada mais antigo do que alimentar a esperança de obter uma vantagem dando carta branca ao Mal e nada mais contemporâneo do que aplicar novos conceitos sobre o que somos e a precificação de tudo o que está a nossa volta e nos compõe como indivíduo.

A tatuagem enquanto sinônimo de arte viva amplia a ideia do corpo como forte elemento de identidade – ao mesmo tempo que abre questão sobre sermos, em parte, criação do outro. Por outro lado, ao mostrar a tentativa de socorrer uma mulher cujo destino está traçado por uma lógica patriarcal é tão mais antigo quanto a mordida da maçã. A xenofobia é um elemento que “O Homem que Vendeu sua Pele” adiciona. Sam será mal recebido na Europa, será lido como alguém que – ao aceitar se tornar matéria-prima de um artista – pode ter sua liberdade e incolumidade física mitigadas. Ou seja, abre-se a possibilidade de comercialização do corpo, estar vivo é apenas uma característica.

O texto, elaborado no roteiro do próprio Kaouther Ben Hania, nos provoca com outros exemplos de como a condição humana não é obstáculo para a precificação. Cita os valores que governos prometem por informações que levem a prender criminosos e o conceito de barriga de aluguel, onde uma mulher lucra com a sua gravidez. Tudo depende, claro, do ponto de vista humanístico o qual se aplica. Não vou defender teses ou analisar em separado os anacronismos criados na obra, é um exercício de retórica dentro do filme que funciona bem, torna a experiência ainda mais simples e direta. Basta apenas registrar como chegamos a um nível de vulnerabilidade tal que nada mais soa absurdo. O clímax do longa-metragem adicionará uma possibilidade tecnológica que aumenta a dose do realismo fantástico. Uma tática parecida com outras produções, como “O Lagosta” (2015) de Yorgos Lanthimos. A ideia é trazer um estranhamento de pouco impacto ao longo de toda a trama para dar força ao mergulho final, extremamente ficcional.

O filme é baseado em Tim, de Wim Deloye, uma das mais famosas obras de arte viva e que, se você ver textos e imagens apenas dessa reportagem, já é capaz de achar grandes argumentos para um debate ético que pode tomar conta de galerias (chamaremos assim?) daqui a alguns anos. “O Homem que Vendeu sua Pele” parte de uma premissa que flerta com o exagero e o absurdo e a insere em um drama tradicional. Com isso, abre questão sobre até onde a modernização da sociedade (e, por consequência, das leis que protegem os indivíduos) nos levará. O destino de Abeer parece traçado desde o primeiro minuto. O de Sam, mesmo improvável, refletirá o desejo de condená-lo previamente. Inovamos apenas na forma.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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