Sinopse: “O Melhor Está por Vir” é uma comédia sobre Giovanni, um cineasta que tenta desesperadamente terminar um filme ambientado em Roma, na década de 1950, sobre comunistas italianos. Mas uma série de obstáculos se interpõe em seu caminho: uma atriz teimosa, orçamento apertado, seu próprio casamento em colapso e o namoro da filha com um tipo inesperado. Sempre no limite, Giovanni terá que repensar sua maneira de agir e acreditar que o melhor está por vir
Direção: Nanni Moretti
Título Original: Il sol dell’avvenire (2023)
Gênero: Comédia | Drama
Duração: 1h 35min
País: Itália | França
Poético, Político e (Auto) Referencial
Dentre as principais estreias de janeiro de 2024 (esperamos que seja um ano de ampla cobertura de lançamentos pela Apostila de Cinema) está o mais recente longa-metragem de Nanni Moretti, “O Melhor Está por Vir”, exibido na mostra competitivo do Festival de Cannes do ano passado. O filme usa a metalinguagem para contar a história de um diretor, Giovanni (Nanni Moretti) e seu trabalho em um filme que se passa na Itália de 1956, ano em que uma contrarrevolução aconteceria na Hungria contra a forma de governança dos soviéticos.
Um capítulo importante na história do país, lembrado até hoje pela juventude da época, como um símbolo de resistência ao período do secretário-geral do partido no país, Mátyás Rákosi, enfraquecido após a morte de Josef Stálin três anos antes e vítima do denuncismo à face ditatorial do que hoje é conhecido como stalinismo. Motivados pela repressão política e pelo declínio econômico, alguns húngaros optaram pela migração – e a “ficção dentro da ficção” criada por Moretti apresenta alguns exemplos desses cidadãos.
O pano de fundo dessa matriosca audiovisual é temperado a partir da chegada de um circo húngaro a uma cidade italiana que acaba de ter seu sistema de iluminação pública inaugurado (parte da obra filmado na histórica Cinecittà). Por lá o Partido Comunista Italiano surge com uma célula bem articulada, o que exigirá de seus militantes um posicionamento sobre o conflito entre União Soviética e Hungria. Se por um lado, Ennio (Silvio Orlando), o protagonista do filme de Giovanni, parece pouco propenso a contrariar as decisões do governo de Stálin, sua colega Vera (Barbora Bobulova) se mostra mais crítica a ideia de opressão violenta aos estudantes separatistas que lideraram o movimento popular na Hungria.
Também escrito por Moretti, sua abordagem adiciona a “O Melhor Está por Vir” uma terceira ótica na primeira parte do filme. Isto porque, variando com as cenas sobre a produção da produção dirigida de Giovanni e cenas da obra propriamente dita, testemunhamos algumas sessões de terapia de Paola (Margherita Buy), esposa do personagem vivido pelo próprio diretor e roteirista. Após décadas de um relacionamento cada vez mais frio, ela trabalha em sua mente um importante passo em sua vida: o da separação, mesmo que os dois permaneçam como companheiros de trabalho.
Ela é produtora de quase todos os filmes de Giovanni, à exceção deste que está em curso. No seu lugar, o realizador conta com a parceria do confuso Pierre (participação especial de Mathieu Amalric). Superestimando a obra, ele colocará a produção em risco pelo iminente esgotamento de recursos.
A comédia situacional de “O Melhor Está por Vir” agradará aos cinéfilos, sobretudo na forma como a liberdade criativa é tratada por Moretti. Giovanni é um diretor com algumas manias ou tradições (como filmar pelo menos uma cena em sua cidade). Assim como o próprio Moretti, entende que algumas escolhas ajudam no viés político de suas obras, além de construí-las a partir de uma autocrítica e revisita às suas criações.
Na mais importante das escolhas do realizador ficcional, o cineasta não quer a figura do Stálin no longa-metragem, mesmo que essa “ausência de fidelidade histórica” seja notada. Ele se preocupa com a estética a ponto de ignorar todos os rótulos de garrafas de água que existiam na época criando um próprio, ao mesmo tempo que se irrita ao ver erros da cenografia ao deixar escapar objetos modernos na mise-en-scène.
Naquela que talvez seja uma das mais importante das escolhas do realizador real, o título original da obra (Il sol dell’avvenire) faz menção a uma canção da Resistência Italiana na Segunda Guerra Mundial, adaptada a partir da canção folclórica soviética Katyusha e considerada um hino de importante organização da Comitê de Libertação Nacional do Partido Comunista Italiano, os Garibaldis liderados por Luigi Longo e Pietro Secchia, marcados na História pela sempre importante luta antifascista.
“O Melhor Está por Vir” também nos mostra uma juventude pouco informada, engajada ou até mesmo preocupada. Um membro da produção, logo no início das discussões sobre o filme de época a ser feito, se surpreende ao descobrir que “existiam” comunistas na Itália. Já Pierre, em momentos já citados no qual superestima o que está sendo feito, exagera ao ponto de chamar a produção de “subversiva”.
Na linha do tempo de 1956, há uma preocupação de representar os militantes comunistas como pessoas decepcionadas com os rumos do stalinismo, não apenas na opressão mas no governo ditatorial. Porém, o grande destaque na intersecção metalinguística é a maneira como Giovanni trata Barbara, que vive Vera. O conflito entre o diretor metódico e a atriz que nota uma tensão amorosa entre sua personagem e Ennio garante alguns dos melhores momentos da obra. Fomenta, inclusive, o inoxidável debate entre sobre a autoria no cinema e a oposição de quem entende pela construção coletiva dessa arte.
Sobra, ainda, espaço para a crítica à escala industrial da Netflix, citando nominalmente a empresa na sequência espetacular na qual Giovanni tenta fechar a conta da produção negociando o investimento da plataforma de streaming pouco disposta a ceder à forma algorítmica de criação para distribuir para 190 países.
No mais, temos inúmeras referências aos filmes anteriores de Moretti. Ainda há tempo para as auto referências, explicitada na cena final que conta com atores que interpretam personagens importantes de outras produções de Nanni Moretti. Aliás, marchando pela Via dei Fori Imperiali, inaugurada sob regime fascista como parte do projeto de iconoclastia do Império Romano, na velha narrativa conservadora de “resgate de valores”. Ou seja, mais uma escolha política de Moretti a partir da ressignificação de um território. Em 1990 ele já havia lançado “La Cosa”, documentário que registra importante momento das militâncias comunista e social democrática no país, com as prévias do episódio conhecido como “virada de Bolonha”.
Ou seja, em “O Melhor Está por Vir” Nanni Moretti não deixa de revisitar a história do seu país, mas também sua carreira, unindo o cinema político à liberdade poética que poucos nos últimos tempos foram capazes de conseguir.
Veja o trailer: