Priscilla

Priscilla (Sofia Coppola, 2023) Crítica do Filme Apostila de Cinema Poster

Sinopse: Quando Priscilla Beaulieu conheceu Elvis Presley, ele já era a grande estrela do rock que conhecemos, mas logo se revela uma pessoa completamente para Priscilla: um aliado durante momentos ruins, um amigo que se pode contar e claro, uma grande paixão.
Direção: Sofia Coppola
Título Original: Priscilla (2023)
Gênero: Biografia | Drama | Musical
Duração: 1h 53min
País: EUA | Itália

Priscilla (Sofia Coppola, 2023) Crítica do Filme Apostila de Cinema Imagem

Invertendo o Holofote

Estreando em janeiro de 2024 nos cinemas brasileiros (e com distribuição garantida mais adiante para os assinantes da MUBI), “Priscilla” é a adaptação escrita e dirigida por Sofia Coppola do livro autobiográfico “Elvis e Eu” publicado por Priscilla Presley, esposa de Elvis entre 1967 e 1973. Com produção da A24 (tendo a própria biografada como uma das associadas), a obra se inicia em 1959, abordando o conturbado relacionamento entre o Rei do Rock e sua esposa a partir dos 14 anos de Priscilla, quando eles se conheceram na Alemanha enquanto Elvis dava uma pausa na carreira para prestar serviço militar obrigatório.

A cineasta opta por um caminho bem mais tradicionalista do que cinebiografias e adaptações anteriores de sua filmografia. Não temos tantas sequências longas como em “O Estranho que Nós Amamos” (2017) e nem o dinamismo que aproxima “Um Lugar Qualquer” (2010) de um gigante videoclipe, por exemplo. Coppola joga com zonas de conforto dos espectadores ao seguir pela linearidade e representações próximas da realidade, deixando que a história ganhe forma de maneira palatável.

Priscilla” em alguns momentos surge como um ótimo contraponto a “Elvis” (2022) de Baz Luhrman. Em outros, como aliado. Na nossa crítica do longa-metragem estrelado por Austin Butler criticamos a omissão ao já citado início de um relacionamento com uma adolescente de 14 anos para ressaltar o ânimo de qualificar o cantor como vítima. Aqui a protagonista vivida por Cailee Spaeny nos apresenta um lado que confere uma carga bem maior de responsabilidade sobre os atos de Elvis – sem, contudo, ofuscar a verdadeira biografada.

Não foi somente com a empresa que administra os interesses do astro do rock que Coppola enfrentou problemas, sempre citados pela forma como ela driblou a ausência de autorização do uso das músicas. A filha dele e de Priscilla, Lisa Marie Presley, chegou a se colocar contra a obra, garantindo que se posicionaria de forma crítica publicamente, entendendo não reconhecer seu pai no roteiro lido. Uma publicidade que nunca se concretizou em virtude do falecimento da filha única de Elvis aos 54 anos há um ano.

O enfrentamento à figura icônica de Elvis Presley sem dúvida se tornou um dificultador para o financiamento da produção, fazendo com que Sofia abandonasse sua tradição de filmar em película, optando pelo digital de forma exclusiva. Mesmo assim, conseguiu debutar no Festival de Veneza de 2023, dando a Spaeny o prêmio de melhor atriz. Com possíveis indicações nas categorias de figurino e maquiagem no Oscar de 2024 e a distribuição mundial da MUBI, o saldo final parece positivo, em mais um êxito na carreira da realizadora.

Por outro lado, figuras como o Coronel (sujeito oculto aqui, porém interpretado por Tom Hanks na obra de Luhrman) são reproduzidas com a mesma fidelidade. “Priscilla” também apresenta uma visão de um empresário manipulador e que foi fundamental para caminhos ruins na carreira de Elvis, sobretudo na década de 1960. O cantor já falava de suas aspirações como ator ao conhecer a jovem nos anos 1950, alguns anos após o lançamento de “Sindicato de Ladrões” (1954), com direito a pôster do Marlon Brando em seu quarto. Entretanto, mesmo com sucesso nas salas de cinema, Presley nunca conseguiu dar um passo adiante, mantendo-se no cabresto do empresário que insistia que o mesmo deveria estrelar musicais fúteis como trampolim de novos discos.

Já suas músicas se mantinham fiéis ao rock ainda pouco desenvolvido do início do movimento. Inclusive, muitos acreditam que a inclusão da versão original de “I Will Always Love You” de Dolly Parton seja uma referência aos grandes equívocos na administração da carreira do astro. Se na história contada por Luhrman esse fator de incômodo se ampliava com o sucesso dos Beatles e depois da psicodelia, aqui Priscilla é mostrada como a esposa que reluta em criticar o trabalho do marido. Mesmo não satisfeito com a gravação, o simples fato da mulher hesitar no elogio é motivo de fúria.

Talvez esse momento seja o grande ponto de equilíbrio que Sofia Coppola sempre manifestou interesse nas entrevistas que deu sobre a composição da obra. O maior objetivo é apresentar a visão de Priscila, independente do tom sombrio pelo qual seu marido é retratado em alguns momentos. Todavia, não podemos esquecer que o filme precisa, sobretudo, contar uma história de amor. Por isso o peso dessa sequência, já na parte final, enquanto contraste do casamento de conto de fadas (ou de novela) que conclui a obra – e que figura como peça importante na arte de divulgação do filme.

Por sinal, a grande marca de “Priscilla” é a forma como a protagonista é retratada, ainda mais com o peso de ser construindo a partir das próprias memórias. Ainda adolescente, a mesma se tornou objeto de desejo de um astro poderoso. Mais adiante se transforma em uma esposa troféu, trancada dentro de um quarto sob a desculpa de que as fãs não poderiam descobrir o relacionamento com uma mulher “comum”. O relacionamento tóxico e abusivo, obviamente, iria descambar para a violência.

Coppola também ressalta as permissões e concessões feitas pela protagonista em vários momentos. Da mudança no cabelo, maquiagem e figurino da jovem (uma construção da imagem de Priscilla Presley como conhecemos pautada em certa artificialidade), passando pela absorção de hábitos. No mais grave, já identificado pela mulher no início dos anos 1960 e que contribuiria para a morte do cantor em 1977, a mistura diária de remédios para tomar e pílulas para despertar – até o uso do LSD. Em outra, a cultura da arma que faz com que a moça passe a ter pistolas de diversas cores e tamanhos, cada uma combinando com um vestido.

Na clássica montagem de transição das narrativas tradicionais norte-americanas, Priscilla e Elvis passam dias trancados no quarto, momento em que ela vestirá inúmeras fantasias para agradar o homem que registra em sua máquina fotográfica Polaroid as diversas faces de uma mulher-troféu.

Se o grande mote do texto de quase dois anos sobre “Elvis” era a maneira como cinebiografias de ícones como Presley e Marilyn Monroe tendem a mostrar as fraquezas como algo provocado, ressaltando o vitimismo, a “Priscilla” de Sofia Coppola de forma corajosa mostra que não é bem assim. Tira de vez a aura do sublime intocável do astro a partir da inversão do holofote. Com a credibilidade de quem conta a própria história, Priscilla Presley nos revela que relacionamentos abusivos não escolhem momento histórico nem classe social.

Um fatídico aspecto de universalismo e atemporalidade que derruba mais uma vez a ideia da inquestionável idolatria.

Veja o trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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