O Novo Evangelho

O Novo Evangelho Crítica Filme Pôster

10ª Mostra Ecofalante de CinemaSinopse: No passado, tanto Pier Paolo Pasolini como Mel Gibson filmaram a crucificação de Jesus na cidade de Matera, no sul da Itália. Em 2019, Matera se tornou o cenário para uma nova encenação da Paixão. Desta vez, Jesus foi interpretado pelo ativista político camaronês Yvan Sagnet, que defende os direitos dos trabalhadores ilegais explorados por um sistema agrícola liderado pela máfia. “O Novo Evangelho” é ao mesmo tempo uma gravação dos ensaios da peça e, fora do “palco”, uma documentação da luta de Sagnet e de seus compatriotas africanos por visibilidade e dignidade.
Direção: Milo Rau
Título Original: Das Neue Evangelium (2020)
Gênero: Documentário | Drama
Duração: 1h 47min
País: Alemanha | Suíça | Itália

O Novo Evangelho Crítica Filme Imagem

Novos Tempos, Mesmas Pedras

Há tempos, o Padre Julio Lancellotti costuma encontrar Cristo em suas incursões pelas ruas de São Paulo. Oferecendo comida a pessoas desalojadas ou qualquer outro tipo de auxílio material ou espiritual na Cracolândia, por vezes ele tira uma fotografia e coloca em suas redes sociais registrando mais um contato com Deus pelo olhar dos desvalidos. “O Novo Evangelho“, docudrama de Milo Rau que abre a 10ª Mostra Ecofalante de Cinema – da mesma São Paulo para o mundo na versão online ainda por conta da pandemia de covid-19 – parte da mesma lógica. Da certeza que todos aqueles que tão bem carregam as culpas cristãs deveriam ter: a de que Ele está em todo lugar.

O cineasta viajara para Matera, no Sul da Itália – lugar escolhido como locação tanto por Pier Paolo Pasolini em “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964) quanto por Mel Gibson em “Paixão de Cristo” (2004) para retratar as passagens mais marcantes dos evangelhos bíblicos. O Jesus do Ocidente, de traços finos e pele branca, se formou a partir de séculos de Catolicismo, que se encontrou (e, por vezes, alinhou) com algumas vertentes protestantes. Hoje, as formas de interpretações e desvirtuações dos preceitos religiosos tornam a passagem do Filho de Deus na Terra algo ainda mais difícil de ser incompreendido.

Talvez por isso a deputada estadual mais votada da história da mesma São Paulo (e do Brasil), Janaína Paschoal, ostente uma imagem santa em seu perfil nas redes sociais ao mesmo tempo que ataca um padre por dar comida a quem tem fome. Na lógica cristã deturpada pelo punitivismo celestial, a professora de Direito da USP e parlamentar em primeiro mandato acredita que isso ajuda o crime. Ou não acredita, mas precisa marcar a posição que lhe renderá engajamento junto ao seu público-eleitorado. É na promoção da intolerância e do discurso de ódio que mais Janaínas ocupam espaços de poder e tornam as vidas de Padres Julios ainda mais difíceis.

Na Europa, a xenofobia é parte fundamental na constituição atual da sociedade. Depois de séculos ocupando territórios, extraindo riquezas e escravizando pessoas ao redor do globo, o imperialismo não aguentou o plot twist das gerações inseridas no contexto globalizado. As oportunidades de vida mais estável e a similaridade dos idiomas (afinal, etnocídios ocorreram aos montes na África e na América colonial) levam milhões de pessoas anualmente a buscar nas ex-metrópoles formas de dignidade. Uma crise humanitária sem precedentes no planeta, que esperamos não assistir o passo seguinte natural de uma trajetória que se inicia com falta de liquidez dos países ricos: guerras costuradas para matar um grande contingente de humanos.

Nesta realidade, em “O Novo Evangelho” Rau encontra o camaronês Yvan Sagnet. Ele é um dos refugiados que trabalham em condições quase análogas à escravidão na mesma região da Itália. Por trás daquele manto (e daqueles montes) de apelo turístico de belas ruínas e cenários de alguns dos épicos mais famosos da história do Cinema, há uma máfia agrícola que remunera de forma indigna a mão-de-obra proveniente de outras nações. Nosso protagonista, imbuído de consciência, se tornará um líder, um guia. Mais um Jesus carregado de ensinamentos. Ao mesmo tempo que auxilia na organização do povo, que precisa regularizar sua documentação para vislumbrar sair da roda precarizante, ele começa a articular meios de desenvolver um núcleo em que os refugiados iniciariam uma cooperativa nos moldes da agricultura familiar que coloca parte da sua comida na mesa – em movimentos sociais que muitos desejam criminalizar.

Inspirado nas lições de Thomas Sankara, revolucionário marxista que se tornou o primeiro Presidente de Burkina Faso, ele usa suas falas não apenas para elucidar as necessidades e possibilidades de ações dos seus companheiros. Sabe que parte do combate à xenofobia em uma Europa envelhecida e com perspectivas ruins é a conscientização dos seus cidadãos. É estancar desde já o impulso de retomar mecanismos que hierarquize humanos de forma oficializada – já que sob o manto do Capitalismo isto já ocorre na prática. A História já assistiu esses ciclos e já sabemos que na sequência teríamos ondas de sofrimento e violência (ainda maiores).

Confesso que a forma como Sagnet se impõe me manteve tão vidrado na tela que todo o exercício de recriação das passagens bíblicas e paralelos com a trajetória de Jesus se destacaram mais pela estética do que como um elemento preponderante na obra. O diretor aplica uma trilha tradicional, reutiliza os figurinos dos clássicos do Cinema e apresenta bem o contraste com o que ele não consegue tirar da frente no território atacado pela modernidade. No meio das ruínas, mesas e cadeiras de plástico e escombros com tijolos são inevitáveis. Porém, nada remete ao novo, é um moderno já afetado pela destruição, por uma sociedade que parece com hora marcada para chegar ao fim.

Sendo assim, “O Novo Evangelho” promove uma reparação histórica ao colocar um Jesus negro e refugiado angariando fiéis no centro da Europa. As performances atualizam o discurso de ódio que cegou o povo que fez o Filho de seu Deus ser crucificado pelos homens. Estão lá as passagens envolvendo a proteção à Maria Madalena, a traição de Judas, a última ceia, a via crucis. Todas elas em um primor fiel à narrativa que atravessou esses dois mil anos para ser objeto de tanta transformação.

Nesta renovação de discurso, lá está Yvan Sagnet, enviado a nós quando parece impossível até aos homens de boa vontade alcançar a paz nessa terra.

Veja o Trailer:

Clique aqui e confira nossa cobertura da Mostra Ecofalante de Cinema.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *