Sinopse: O filme é um documentário sobre a região sertaneja do Rio do Peixe. Há três séculos, as terras secas do nordeste, habitadas pelos índios Cariris, foram conquistadas pelos bandeirantes e colonos que ali estabeleceram as primeiras fazendas de gado, desenvolvendo uma cultura pastoril e agrícola.
Direção: Vladimir Carvalho
Título Original: O País de São Saruê (1971)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 31min
País: Brasil
Fonte que Nunca Seca
Há cinquenta anos, quando uma nova proposta de cinema brasileiro começou a ser alvo de perseguição da censura às artes promovida pela Ditadura Militar e ampliada com a edição do Ato Institucional nº 5, “O País de São Saruê” já demonstrava que os olhares e representações sobre o povo deste país não deveriam ser atravessados – como o cinema de pensamento industrial, elitista, exotizante, reprodutor de estereótipos e concentrados no eixo Sul do país fariam. Seguiram fazendo e, em certa escala, ainda o fazem – mesmo que a quebra da cartelização fosse conquistada, na marra, antes dos desgovernos matarem o Cinema Brasileiro algumas vezes.
Exibido na Mostra Preservação desta 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, a sessão começa com um descritivo sobre as dificuldades encontradas no restauro da obra, ocorrido entre 2003 e 2004. Contando com apoio e consultoria tanto do diretor Vladimir Carvalho, quanto do assistente de direção, Walter Carvalho, a produção de um material de forte teor social no auge de um regime de exceção, desrespeitoso às garantias e liberdades individuais, foi uma marca que acompanhou todo o processo, até que pudéssemos reencontrar sua versão digitalizada.
Se o paulistano Eduardo Coutinho retorna a Sapé, no interior da Paraíba, vinte anos depois e retoma sua criação mais celebrada, “Cabra Marcado para Morrer“, o pessoense Vladimir, colega de faculdade de Glauber Rocha, militante da UNE, não se contentou em assistir a interrupção abrupta do documentário – o qual seria assistente de direção daquele cineasta. Deixou também na gaveta a história das Ligas Camponesas e foi fazer carreira no Rio de Janeiro e foi acolhido no Festival de Brasília. Foi justamente neste festival em 1971, que “O País de Saruê” entrou na clandestinidade.
A primeira parte do longa-metragem une o viés observatório com uma poética cordelista que apresenta o verdadeiro sertão para aqueles acostumados com as já criticadas visões de um audiovisual mais preocupado em promover questões pelo reducionismo do que fazer refletir. É refletir o imagético do imaginário de Guimarães Rosa, as escrituras e verbalizações de Darcy Ribeiro, bem como de todos os criadores que inauguraram a forma moderna de se entender o país. São camadas de um povo brasileiro forjado pelo esmagamento das elites, em sobrenomes coronelistas que se repetem desde sempre.
Todavia, nessa expressão que mescla o lúdico com o informativo, o diretor acaba vestindo seu lobo na pele de um cordeiro antropólogo. No oeste da Paraíba, onde a Confederação dos Cariris mostraria no final do século XVII que a ideia de povo cordial é construção social de cima para baixo, Carvalho que sugestionar uma paz controlada. A pecuária expansiva “garante” emprego a muitos, as manifestações culturais populares como os folguedos adicionam o circo ao pão. A religiosidade garante o cabresto. A virada da narrativa surge quando o cineasta traz a formação das família pelas fotografias.
A narração, então, avança no espaço-tempo e só então demos conta de que a Confederação dos Cariris poderia nunca ter acabado. Guerra do Paraguai, trilhos do trem, construção de estradas e a chegada dos carros. Essa cronologia nos transporta de vez ao ponto onde a obra está, em meio à falácia do milagre econômico e mantendo a estrutura de servidão na velha cultura do algodão. A meação moderniza o conceito que torna o dono de terra, em parte, possuidor de seu funcionário. Há cinquenta anos era o emprego que garantia uma vida “financiada pelo patrão”. Hoje atualizaram para “empreendedorismo” em uma curva precarizante que mudou a forma, mas não o conteúdo que mantém o povo na miséria.
Dali em diante “O País de São Saruê” mostra ao que veio – e os motivos que fizeram o governo ditatorial censurá-lo por quase uma década. Com críticas ao Estado e ao mercado financeiro que não promovem a emancipação dos sertanejos, a partir da prática da pequena agricultura. Para além da seca, usada como desculpa pelos coronéis e pelos poderosos que desejam manter a desigualdade no território, os depoentes demonstram consciência com o que chamam de “estrutura agrária”.
Na montagem, Vladimir Carvalho faz uma ponte interessante com os grandes centros urbanos, a partir da música. De Roberto Carlos à versão de “Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones” dos Incríveis, voluntários norte-americanos e senhores que passaram pela experiência de garimpo trazem o contraste entre a hipocrisia e o desejo de luta sufocado por um país que não lhe garante a fala. Nem o Cinema faria isso, quanto mais a política ou um bando de jovens que parecem querer fugir das guerras do seu país simulando uma ação humanitária.
Sufocado pela censura, cinquenta anos se passaram e o diretor poderia revisitar “O País de São Saruê” que encontraria a mesma lógica coronelista de outros tempos. Sem dúvida chegaria à mesma conclusão: os poderosos sabem o que estão fazendo – e o povo também sabe o que está sofrendo. Resta saber até quando esta paz controlada perdurará.
Assista a um debate sobre “O País de São Saruê” promovido pela UFF:
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