O Tigre Branco

O Tigre Branco Crítica Filme Netflix Índia Pôster

Sinopse: “O Tigre Branco” conta a história de um ambicioso motorista indiano que usa sua inteligência e astúcia para escapar da pobreza e alcançar o sucesso. Uma jornada épica baseada no best-seller do New York Times.
Direção: Ramin Bahrani
Título Original: The White Tiger (2021)
Gênero: Drama | Crime
Duração: 2h 5min
País: Índia | EUA

O Tigre Branco Crítica Filme Netflix Índia Imagem

Entre a Ingenuidade e a Raiva

Entre a ingenuidade e a raiva, “O Tigre Branco” é um filme que incomoda. Talvez devesse incomodar mais por outros motivos – e talvez lhe incomode pelos motivos certos. O longa-metragem, escrito e dirigido por Ramin Bahrani, adapta o livro de Aravind Adiga lançado em 2008. Daquele sucessos editoriais que a indústria cinematográfica adora investir porque tem o retorno certo de um público fiel – e sempre garante uma outra onda de vendas (geralmente com capas pouco criativas que replicam o pôster do filme). Desta vez a Netflix fincou o pé nesse filão, em uma coprodução entre a Índia e os Estados Unidos.

Seu lançamento estendido para janeiro de 2021 e o aumento em dois meses da janela elegível para o Oscar ajudou para que a história do jovem Balram (Adarsh Gourav) garantisse algumas indicações na temporada de prêmios e fechasse a lista de melhor roteiro adaptado pela Academia. É daquelas escolhas que podemos dizer que “joga para a galera”. Com poucas chances de vitória, contempla mais uma obra e ainda atrai o interesse de quem conhece a trama. Se há algo mais perdido do que o próprio protagonista nas mais de duas horas de projeção é a forma como a narrativa se apresenta. De todos os incômodos possíveis, o que não imaginaria sentir era o de, após criar um ambiente de interessantes dinâmicas sobre a luta de classes, potencializada em um país com inúmeras castas constituídas, nos sentíssemos reiterando o mesmo fato, resgatando a premissa básica apresentada em outra sequência parecida com aquela que terminou há poucos minutos.

Balram é um homem de personalidade curiosa, principalmente porque sua persona mais empolgante é quanto ele surge como narrador. Debochado, se apropriando de símbolos e divisões da sociedade indiana, ele se mostra desde o primeiro minuto alguém com um futuro de sucesso. Ao final da trajetória, teremos um personagem consciente da luta de classes que a elite quer transformar em tradição. Iniciando sua jornada em Nova Deli no ano de 2007, ele chama para a si a figura paradigmática. “O Tigre Branco“, aquele que nasce apenas um a cada geração, o escolhido, o premiado, pode ser qualquer um nas periferias da capital do país – incluindo ele. Diante de uma dúvida sobre a ruptura ou aceitação da lógica meritocrática, o filme nos instiga a continuar.

Como qualquer produto dos últimos anos, o referencial grita. O algoritmo da Netflix funciona aqui no modo mezzo arthouse mezzo circuito de festivais. Balram não tem o mesmo carisma de Jamal Malik (Dev Patel) de “Quem Quer Ser um Milionário?” (2008), por exemplo – que é referenciado em uma frase, por sinal. Aliás, faça uma dobradinha e complemente a sessão do longa-metragem de Bahrani com o trabalho de Danny Boyle vencedor do Oscar há pouco mais de uma década e disponível na mesma plataforma de streaming. Até para esquecer a trilha sonora genérica que reúne uma mistura de hip hop e ritmos indianos que tenta ser uma nova “Jai Ho“, mas não consegue.

Também não se parece, mas quer beber da fonte da inocência de outro motorista, o coreano Kim (Song Kang-ho) de “O Motorista de Táxi” (2017). Nesse encontro dos consciência social e política, o jovem vê na possibilidade de se tornar motorista particular do ricaço Ashok (Rajkummar Rao) uma perspectiva. Uma montagem que o leva à Deli com um olhar curioso que fez lembrar uma cena de Billi (Awkafina), de um dos grandes injustiçados do ano passado, “A Despedida” (2019) de Lulu Wang. Um longa-metragem que também não apela na carga emotiva, mas que desenvolve seu drama com muito mais eficiência.

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A pluralidade da divisão de castas na Índia é objeto de algumas das produções audiovisuais mais interessantes dos últimos anos. Nosso protagonista aqui é reducionista e vê uma grande diferença: pobres e ricos, quando relações de gênero e, principalmente, religiosas, passam diante de seus olhos. Nessa ingenuidade simplista, sobram passagens que exageram nesse aspecto de sua personalidade: “primeiro saneamento, depois democracia“, ele diz em determinado momento, como se fosse lados de moedas, como se não fosse um processo em desdobramento. Talvez por isso a figura “misteriosa” de “O Tigre Branco” seja a candidata definida como “A Grande Socialista”. Mais adiante veremos como ela tende a se comportar, mas a ausência de seu desenvolvimento enquanto personagem é ainda mais reducionista.

É como dizer que a conciliação de classes é impossível – mas também colocar como fato consumado a lógica opressora. Não há um ponto focal na obra, que garanta ao espectador se tratar de uma narrativa de redenção, de uma vendeta des(equilibrada) ou um devaneio em um mundo onde nada mudará. Parte disso é que o ritmo do filme reserva quase toda a sua extensão para reproduzir inúmeras formas de humilhação, quase um sadismo, com o objetivo de criar no público o terreno para justificar as atitudes de Balram. Ele, pelo contrário, não manifesta nenhum descontentamento, nenhuma caminhada rumo a uma mudança de pensamento. Ela surge como um clique, quase tão afobadamente catártica quanto “Nova Ordem” (2020), violento filme mexicano vendido como novo “Parasita” (2019) e que perdeu força rapidamente nesta temporada.

Perto do final, o longa-metragem ainda reserva uma cena que incomoda, mas dessa vez apenas no sentido negativo. No que seria a situação-limite, a gota d’água do entendimento como fracasso do personagem, ele fica de frente para uma pessoa em situação de rua e abaixa as calças, em um dos momentos mais constrangedores do uso da pobreza ou qualquer outro recorte social enquanto algo aterrorizante desde “Praça Paris” (2017). Ali a virada de chave totalmente descabida já tinha nos feito perder o contato com a obra, bem quando a sub trama política parecia flertar com as sensações de “A Cidade é uma Só” (2011) e exemplos bem mais edificantes enquanto produto.

Lamenta-se porque, no que circunda o filme, há muito a ser tratado. Do surgimento de bairros verticais parecidos com a Barra da Tijuca à forma como a elite do país insiste em imaginar o futuro de sua riqueza a partir do carvão. Esse tema em específico, principalmente a participação dos Estados Unidos em tal dinâmica, foi objeto de nossa crítica de “A Nova Era do Petróleo” (2018), que assistimos durante a 9ª Mostra Ecofalante. Perdido nos exageros de suas representações, “O Tigre Branco” tenta vender o proletário como antagonista de si mesmo, trazendo a história de um homem que, injustificadamente, amava seus patrões. Uma subserviência romântica que tira toda força do que realmente nos deixa vidrado na narrativa: a ideia de que há pessoas que tem muito a perder com seus “erros” e outras que, ao não ter nada a perder, deveriam se sentir livres.

Veja o Trailer:

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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