Sinopse: Em 1968, uma manifestação pacífica durante a Convenção Nacional Democrata se transformou em um violento confronto com a polícia e a Guarda Nacional dos EUA. Os organizadores da manifestação, que passaram a ser chamados “Os 7 de Chicago”, foram acusados de conspiração e incitação à desordem. O julgamento do caso se tornou um dos mais famosos da história.
Direção: Aaron Sorkin
Título Original: The Trial of the Chicago 7 (2020)
Gênero: Drama Histórico | Thriller | Tribunal
Duração: 2h 9min
País: EUA | Reino Unido | Índia
O Indevido Processo Legal
Pensando de forma prematura e tentando encontrar classificações possíveis, “Os 7 de Chicago” parece se enquadrar em uma terceira onda do cinema norte-americano no trato do efervescente período da década de 1960, em que a Guerra do Vietnã entrou em choque com a luta pelos direitos civis. JFK, Lyndon Johnson e Nixon, um período que o cinema retratou poucos anos depois, ainda no calor dos acontecimentos, pelo viés pós-traumático, de clássicos como “Amargo Regresso” de Hal Ashby e “O Franco-Atirador” de Michael Cimino, ambos de 1978. Em seguida, produções que colocavam o público dentro de um conflito que nasceu fadado a fracassar, como “Platoon” (1986) e “Nascido em 4 de Julho” (1989).
Pense que o próprio Oliver Stone, que dirigiu os últimos dois mencionados, tenta reinaugurar essas leituras no início dos anos 1990 com “JFK: A Pergunta que não Quer Calar” (1991). Com o passar do tempo, o audiovisual dos Estados Unidos da América parece ter percebido que as movimentações internas eram fundamentais, que a guerra (por mais espetacular que possa se apresentar enquanto gênero) é uma mera consequência. Os dramas políticos ganham força e o longa-metragem escrito e dirigido por Aaron Sorkin (ainda longe de Ashby, Cimino e Stone) vem compor um rol interessante de produções dos últimos anos, dessa vez com a chancela da Netflix em sua distribuição.
Seja “The Post: A Guerra Secreta” (2017) ou “Selma: Uma Luta por Igualdade” (2014), os reflexos de uma falta de consciência política da população norte-americana parece ser o assunto que vincula essas narrativas históricas – de um período específico – com a realidade da sociedade atual. Lendo a frase que compõe o pôster de “Os 7 de Chicago” (“em 1968, a democracia não recuou“) não podemos deixar de lembrar a invasão ao Capitólio no último dia 6 de janeiro, por seguidores de Donald Trump, Presidente em fim de mandato. O filme de Sorkin se passa mais de cinco décadas antes e traz a perseguição a um grupo plural de manifestantes, líderes em seus segmentos (estudantil, movimento negro, etc.) por parte do sistema judicial do país – agindo conforme entendimento do recém-empossado Richard Nixon.
Soa como uma ironia a materialização desse processo ilegítimo ser reservado ao ator Frank Langella, que interpreta o juiz Julius Hoffman. Em 2008 ele estrelou um dos filmes mais hipnotizantes dessa safra de dramas históricos, também pensado para a temporada de premiações. Em “Frost/Nixon” ele foi o próprio Presidente. Apesar do elenco recheado de rostos conhecidos, é ele quem dá as cartas novamente por aqui. Tirando uma montagem frenética nos primeiros minutos, gestada para inserir um leque extenso de personagens antes do tribunal tomar conta de toda a projeção, quase todas as ações de “Os 7 de Chicago” surgem como reações ao trabalho do juiz.
Registro importante do sistema do Estados Unidos – e de como o nosso Poder Judiciário pode ser ainda pior. O procurador Richard Schultz (Joseph Gordon-Levitt) tem um importante papel, o de espelhar os anseios do que seriam os seus patrões. O ator também explora bem esse incômodo do homem que se sente perdido e desapontado pela perda de uma autonomia funcional que ele acreditava ter. A vida para quem trabalha com o Direito passa muito por essas frustrações, quando vemos na prática que toda a ética e a busca por justiça da teoria tem grandes (e poderosos) obstáculos. A diferença é que no país onde se passa o filme, a figura do promotor é daquele que persegue – dentro do processo. Quase como um escritório de advocacia à serviço do Estado. No Brasil, como grande conquista da Constituição de 1988, a equiparação do Ministério Público e seus membros a um Poder, faria de Richard bem menos marionete de Nixon e seus seguidores. Porém, sabemos também que Constituições existem na América Latina para serem rasgadas de vez em quando.
Sorkin consegue, sem perder o foco do julgamento, trazer um pouco do que foi a ascensão do conservadorismo e da moralidade hipócrita de um ano marcado pela tomada da contracultura em quase todos os países do Ocidente – e que nos coloca em rota de colisão com os tempos atuais. Os velhos discursos contra os fantasmas do comunismo e a esquerda radical, em uma nação que nunca esteve nem perto de movimentações nessa natureza. Todavia, o que talvez chame mais a atenção na obra é a cena que traz o confronto de ideias entre Tom Hayden (Eddie Redmayne) e Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen). O primeiro é um jovem que vê na organização política um importante caminho para que a sociedade civil apresente suas demandas e obtenha suas conquistas. O segundo é um artista, que usa as manifestações e o movimento de luta quase de forma performática, entendendo que a provocação da filosofia hippie é autossustentável.
Nessa hora, Hayden faz uma ilação que é um golpe de sinceridade da indústria audiovisual de um país que transformou a luta por igualdade em uma mistura de conto de fadas com a irritante ideologia meritocrática. Ele afirma que, por décadas, a ideia por trás de pessoas com pensamentos progressistas e a favor da garantia de direitos sociais mínimos seria a do artista rico, uma visão romanceada do que é ser de esquerda na terra dos livres e morada dos bravos. Outros momentos inspirados da obra são a manutenção de um thriller sobre as possibilidades de um julgamento – que só existiu pelo grande número de agentes infiltrados em todos aqueles movimentos, denotando uma articulação do Estado para desbaratar qualquer protesto. Entretanto, o filme recebeu muitas críticas sobre a licença poética dada a David Dellinger (John Carroll Lynch), um pacifista convicto na vida real – bem como à cena final, alterada para ter a magnitude que a narrativa exige. Porém, são pequenas permissões que faz com que a obra funcione bem melhor.
Por fim, a questão racial envolvendo Bobby Seal (Yahya Abdul-Mateen II). Ainda que pouco explorada, o espaço que o filme permite para se pensar motivações e diferentes desdobramentos de uma sociedade flagrantemente racista está lá. Os meses de julgamento, sem dúvida, forneceriam material para um produto tão completo quanto a primeira temporada de “American Crime Story“, que tratou do julgamento de O.J.Simpson, por exemplo. Todavia, as duas horas, para o recorte pretendido, se revelam suficientes. Méritos da montagem de Alan Baumgarten, que pode conseguir sua segunda indicação ao Oscar (a primeira foi por outro trabalho complexo, “Trapaça“, que o diretor David O. Russell lançou em 2013).
Porém, se pensarmos no que se transformou o confuso “O Diabo de Cada Dia“, lançado com as mesmas pretensões de “Os 7 de Chicago” – além de outros cavalos-de-Tróia que a Netflix deposita em seu catálogo semanalmente, aqui, comparativamente, estamos quase levando ouro em pó para casa.
Ouça “Hear My Voice”, canção interpretada por Celeste para a trilha sonora de “Os 7 de Chicago”: