Os Famosos e os Duendes da Morte

Os Famosos e os Duendes da Morte

Sinopse: Um garoto de 16 anos, fã de Bob Dylan, tem acesso ao restante do mundo apenas por meio da internet, enquanto vê os dias passarem em uma pequena cidade rural de colonização alemã, no sul do Brasil. Mas uma figura misteriosa o faz mergulhar em lembranças e num mundo além da realidade.
Direção: Esmir Filho
Título Original: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009)
Gênero: Drama
Duração: 1h 41min
País: Brasil

Os Famosos e os Duendes da Morte

Antichoque Geracional

No caminho da revisitação de “Os Famosos e os Duendes da Morte” lembramos que, de vez em quando, as publicações de cultura pop redescobrem Bob Dylan, motivados por lançamentos de obras musicais, audiovisuais ou literárias sobre o artista. É assim desde um álbum especial de Zé Ramalho à cinebiografia bacanuda de Todd Haynes. Na esquina do final da década 00, estávamos em mais uma onda dessas. Eduardo Suplicy, no auge da Era PT, versava com os dizeres do poeta folk nas comissões e plenário do Senado Federal. Em 2005, Martin Scorsese lançava “No Direction Home“, documentário profundo sobre o período da carreira de Dylan na primeira metade da década de 1960.

Época esta que levou o cantor ao estrelato, muito por conta do lançamento de “Like a Rolling Stone“, canção de 1965. Tão icônica na história do rock, alçada ao status de clássico instantâneo, que nomeou uma das revistas mais importantes do século XX, a Rolling Stone, um marco da contracultura. Revista esta que chegaria ao Brasil, oficialmente, em 2006 (houve uma versão não licenciada na década de 70). Já no ano seguinte, o filme “Não Estou Lá” (2007) se propôs a revisitar parte da obra e da biografia de Dylan em um interessante mosaico de protagonismo pulverizado, com nomes potentes como Cate Blanchett e Christian Bale.

Nesse contexto, o escritor Ismael Caneppele lançava em 2008, aos 27 anos, “Os Famosos e os Duendes da Morte”. Uma época em que poderíamos ler Caetano Veloso na ala de colunistas de O Globo. Lá, como bem lembrou Jandiro Adriano Koch no texto de abertura de uma entrevista com Isamel, a escrita dele foi comparada ao que de melhor o modernismo tido como subliteratura produziu, com seus desapegos às regras. Talvez por isso, o realizador Esmir Filho, com os mesmos 27 anos de Caneppele, tenha se interessado tanto pelas possibilidades que uma obra audiovisual permitira com a incursão pela obra.

Foi assim que o longa-metragem de estreia do diretor, que desde 2006 ganhava prêmios com curtas-metragens como “Alguma Coisa Assim“, estreava no Festival do Rio. Este texto de Marcelo Miranda, que fala do que foi o fenômeno “Tapa na Pantera” e de como YouTube e Orkut já andaram lado a lado. Traz de forma bem sucinta a origem de Esmir, da faculdade de cinema para o estrelato em poucos meses. Porém, a chegada ao dito “grande circuito” em 2009 tirou o cineasta da bolha mais jovem, atingindo Eduardo Escorel, que nesse texto na Piauí, antes da popularização do Google (ferramenta nos transforma em especialistas de qualquer coisa em dois ou três cliques), assume não conhecer muito o diretor e ter ficado impressionado com sua obra mais recente.

Parece um mundo bem distante, mas o mainstream já foi dominado apenas por uma parcela da sociedade que detinha os meios de produção editoriais. Por isso pode soar estranho a quem vê “Os Famosos e os Duendes da Morte” dez anos depois do seu sucesso o que o levou a essa comoção. Se há algo que chame a atenção é sua abertura, que mostra um menino em seu computador, postando vídeos, conversando no MSN Messenger e atualizando seu blog. Um mundo em que a parcela de adolescentes inserida no mundo digital daquela época acreditava ser banal, mas que não tinha espaço em uma arte tão nobre como o Cinema. Quase um desktop movie, que dali para a frente se tornaria bem comum, sem causar qualquer estranhamento. Uma linguagem totalmente absorvida pelo espectador, como podemos ver em obras populares como “Cam” (2018), lançada pela Netflix.

Esse prólogo, ao som de alguns MP3s possivelmente de baixa qualidade baixados no Napster e ouvidos no Winamp, é uma criação de mundo sem fronteiras que Mr. Tambourine Man (Henrique Larré) não encontrará em Estrela, cidade do interior do Rio Grande do Sul. Esmir Filho cria essa transição com um despretensioso passeio pela linha do trem, uma longa brisa que nos evoca a vida adolescente, quase sempre hospedeira dos vírus da inventividade e da inconsequência.

Quando revisitamos essa obra, por ocasião do lançamento da primeira temporada da série “Boca a Boca“, criada por Esmir para a Netflix, identificamos as óbvias relações da ambientação no mundo dos jovens e, principalmente, no ritmo imposto à obra por conta da impossibilidade de alternativas que lugares como Estrela (cidade real de “Os Famosos e os Duendes da Morte”) e Progresso (cidade ficcional de “Boca a Boca”) apresentam. No seriado, a narrativa – que se passa em uma realidade muito mais tecnológica e globalizada – permite que esse ritmo se altere, com a fluidez que os adolescentes de hoje conseguem por em prática.

Só que em seu primeiro longa-metragem, concebido em roteiro escrito por ele e pelo próprio Ismael Caneppele, isso não é possível. Todos os acontecimentos têm um peso, assim como as palavras ditas. É estilizado porque o protagonista precisa ver poesia para fomentar um sentido para si. Viver uma época de constantes transformações sem que nada relevante pareça acontecer, é a mola propulsora do fã de Bob Dylan. O cineasta, então, consegue aliar oportunidade e talento e chega no audiovisual em um período em que as mudanças nas formas de comunicação pediam novas representações, novos discursos. Os resultados chegaram e basta procurar como se falava de Cinema naquela época e comparar com hoje.

A incursão deu muito certo e o filme, distribuído pela Warner, foi selecionado para o Festival de Berlim e o Festival de Locarno de 2009. Encerrou aquele ano vencendo no 11º Festival do Rio o prêmio de melhor longa-metragem de ficção pelo júri presidido pelo cineasta argentino Fernando Solanas e composto pelo produtor alemão Roman Paul, pelo produtor francês François Sauvagnargues, pela cineasta brasileira Helena Solberg e pela atriz brasileira Julia Lemmertz. Um ano marcado por “Dzi Croquetes“, de Tatiana Isa e Raphael Alvarez (melhor filme de documentário, empatado com “A Construção da Utopia“; “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” de Karin Aïnouz e Marcelo Gomes (melhor direção do festival) e do curta-metragem “Olhos de Ressaca“, inaugurando a carreira de premiações de Petra Costa com o troféu de melhor curta-metragem.

Naquela mostra, “Os Famosos e os Duendes da Morte” foi o grande vencedor do Festival. Pensado em perspectiva, talvez se pareça mais com as criações de Jack Kerouac ou Bob Dylan, uma forma de executar ansiada por seus realizadores, mesma característica que o transferiu de “filme certo na hora certa” para uma obra mais envelhecida do que de costume. Só que é interessante pensar que, o que pode ter acontecido, é que passamos a correr atrás de novas referências. Nem Esmir e nem Caneppele ficaram pelo caminho, seguiram construindo prolíficas carreiras. Essa obra, entretanto, marca um importante encontro de gerações dentro de um espaço que nunca foi pensado para ser plural.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *