Ostinato

Ostinato Paula Gaitán Mostra Homenagem 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes Imagem

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Sinopse: Documentário sobre o processo criativo de Arrigo Barnabé.
Direção: Paula Gaitán
Título Original: Ostinato (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 56min
País: Brasil

Ostinato Paula Gaitán Mostra Homenagem 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes Imagem

O Retrógrafo Invertido

Ostinato” abriu a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes na noite do dia 22 de janeiro trazendo aquilo que se espera do festival: um misto de provocações. A estreia mundial do (ou um dos) mais recentes trabalhos de Paula Gaitán se propõe a acompanhar o processo criativo do músico paranense Arrigo Barnabé. Um erudito de vanguarda, caso as viagens rotulantes forem permitidas. Discípulo do método dodecafônico de Arnold Schönberg, ele não deixa de representar a arte e suas possibilidades de contradições.

O filme surge após a cerimônia de abertura em que a cineasta é homenageada. Após um 2020 em que figurou em alguns dos grandes festivais brasileiros e internacionais (“Luz nos Trópicos” é lançado na Berlinale e vence o 9º Olhar de Cinema de Curitiba, enquanto “É Rocha e Rio, Negro Léo” se destaca em Tiradentes mesmo), Gaitán nos brinda com três novas obras. Reflexo de uma releitura de suas captações de imagens constantes. Se o próprio épico que surge em Berlim é visto por ela enquanto um filme ainda em processo de formação, aqui temos um registro de falas do compositor do ano de 2018, montadas no isolamento social provocada pela crise sanitário do novo coronavírus – que nos exige uma manutenção do estado de permanência enquanto a culpa pela suposta improdutividade nos consome em paralelo.

Nesse contexto, “Ostinato” nasce enquanto exploração do discurso de Barnabé, uma visão que funcionou muito bem também com Negro Léo. Entrando no mundo do desenvolvimento de uma criação artística – um debate imediatamente relacionado com o tema dessa edição da mostra, chama a atenção a visão inicial de Schöenberg compartilhada por Arrigo. A decisão sobre uma nota que se segue pode colocar em risco o entendimento acerca da anterior. É a unidade enquanto prisão e que torna o fazer artístico uma atividade com alto grau de contradição. Isso existe no audiovisual – e não apenas em obras fechadas. A própria carreira de Paula Gaitán inverte essa lógica. Não busca coerências entre narrativas, linguagens ou gêneros. Ela pluraliza suas representações e quem chega aqui esperando algo próximo de “Luz nos Trópicos” pode entender ser ela uma contradição – enquanto, na verdade, é um mundo inteiro dentre de si.

Um estágio de clausura talvez tenha deixado o filme amadurecer para que ela fugisse de uma lógica de acompanhamento muito parecida com “A Verdade Interior” (2020). Nele, a atriz argentina Sofia Brito “aproveita” os dias com o diretor James Benning durante as gravações de “Telemundo” (2020) para desnudar uma personagem ouvindo suas percepções existenciais e filosóficas – como só o cineasta sabe fazer.

Há formas de leitura do média-metragem enquanto registro biográfico. Tanto na relação de trânsito entre erudito e popular, como na menção ao mestre e parceiro Itamar Assumpão (expoente da Vanguarda Paulista, que transformou a produção independente no mercado fonográfico brasileiro). As dificuldades em se definir são nítidas e há momentos em que Arrigo fala de seu “sertanejo lisérgico”, mas sempre com o cuidado de não exagerar uma convicção que torne a leitura de seu trabalho reducionista.

Contudo, aqui reside o grande destaque de “Ostinato“.

Ao analisar o outro enquanto receptor de suas produções, o artista magnificamente contradiz essa proposta. Entende que há no mundo uma crise de comunicabilidade, que impede a chegada de obras como a sua ao público – e ao mesmo tempo dificulta a “leitura” dela pelas pessoas. Se há um erudito popular, há uma dupla face de manifestações dentro da mesma pessoa. Portanto, não há uma lógica de discurso se você possui visões antagônicas dentro de si. Isso gera o grande momento do filme, que Paula Gaitán com muita sensibilidade estende quase como toda a segunda metade do média-metragem.

Dois elementos de montagem chamam a atenção na cena. A primeira é que a diretora se expõe em voz apenas nesse momento. Até aquele ponto, ela era personagem enquanto olhar, trazendo uma visão muito particular às imagens que produzia. Mas a junção dos vocábulos revolucionário e escatológico deixa ela inquieta – e ela entende que precisa falar. O outro momento é quando ela revela que o início do monólogo sobre a decadência do gosto é, na verdade, o fim. Isso torna o pensamento de Arrigo Barnabé um ciclo, em que o simples deslocar de um momento põe em dúvida toda a cronologia que ele impôs à sua fala.

Como ela consegue criar vários pontos de virada em documentário que acompanha um personagem por alguns espaços? Não sabemos. É uma mistura de memória visual com sensibilidade. É gostar de gente. Tanto que não poderíamos discordar menos de tudo o que nosso protagonista fala, mas mesmo assim refutá-lo não faria sentido. Gaitán dá às imagens o peso de serem absolutas.

Essa conclusão de “Ostinato” segue um caminho de um saudosismo purista do biografado. Recepcionar a fragmentação das relações, da sociedade e tudo que se desenvolveu daí (inclusive a arte) como perda é se debruçar sobre possibilidades para sua obra que não se vincula ao que pensamos. Talvez nem o que Paula pensa, já que ela surge quase como antagonista. Ou seja, é possível que ela tenha encontrado um personagem que a desafie não enquanto objeto da obra, mas enquanto discurso. Contudo, Arrigo Barnabé é um dos antagonistas mais talentosos e brilhantes que poderíamos enfrentar.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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