Sinopse: Perto do aniversário de 200 anos da sua cidade, Russas, a cearense Pacarrete (Marcélia Cartaxo) oferece uma homenagem com sua arte da dança. O presente não é bem recebido pelas autoridades locais, mas a insatisfação da protagonista não arrefeçará.
Direção: Allan Deberton
Título Original: Pacarrete (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 37min
País: Brasil
Um Sopro de Vida
“Pacarrete” era aguardado com expectativa por trazer, para os cinemas, o primeiro longa-metragem pensado dessa maneira por Allan Deberton. Após três curtas-metragens (que serão analisados nos próximos dias pela Apostila de Cinema) e um filme para a TV Verdes Mares, co-dirigido por André Araújo, o que já era promissor se tornou uma realidade atropelante. A obra venceu oito prêmios no Festival de Gramado de 2019, incluindo filme, diretor e atriz. Por sinal, ganhou oito dos catorze possíveis. Quando as notícias chegaram, o Brasil queria ver “Pacarrete”. Em um ano em que a produção nacional empilhou longas-metragens que passaram por cinemas e festivais com muita repercussão, como “Bacurau“, “A Vida Invisível“, “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, “Bixa Travesty“, “Temporada“, “Espero tua (re)volta” – poderíamos seguir por alguns parágrafos… O filme de Deberton já surgia como um dos grandes lançamentos de 2020.
Atravessando os festivais das grandes capitais no segundo semestre mantendo a boa receptividade, o longa-metragem foi mais um prejudicado pela pandemia de covid-19. Nossa curiosidade talvez não será saciada, mas é provável que o lançamento em formato pré-estréia do filme na semana do Festival Espaço Itaú Play dê um justo retorno a esse filme com um bom alcance. Uma obra que, além de ter merecido todo o reconhecimento no tradicional festival gaúcho, provoca muito – e de muitas maneiras.
Marcélia Cartaxo é Pacarrete, uma bailarina (aposentada ou frustrada – e aqui começamos a criar bifurcações de visões e interpretações sobre o filme, algo que Deberton faz muito bem – mesmo baseando a história em fatos), moradora de Russas, no Estado do Ceará. Perto da festa do segundo centenário da cidade, ela oferece uma apresentação especial de presente para o governo municipal. Ficará na história da região essa homenagem da artista. Como, infelizmente, é comum, a arte é desdenhada e Pacarrete ignorada em seu gesto. A cena inicial, que será relembrada por todos que assistirem ao filme por ilustrar um dos pôsteres mais habituais dos círculos cinematográficos dos últimos meses, já traz um pouco da sensação de uma forma de vida que se esvai, antes mesmo que a dona dela pudesse se despedir.
Cartaxo dança com uma vassoura na porta de sua casa/loja. Nos primeiros enquadramentos da sequência, fechados no sobrado, a roupa da personagem – aliado à propriedade atrás, não permite que nos situemos no tempo. Apenas quando a câmera começa a se deslocar sutilmente, podemos ver alguns estabelecimentos mais modernos, com seus sensores de presença e vitrines. Deberton revela com parcimônia, deixando claro que aquele mundo não lhe interessa. O mundo no qual o público precisa mergulhar é o de Pacarrete.
Depois de um prólogo apaixonante, o que se segue é uma fórmula (no bom sentido) com alguns elementos que faz do Cinema Brasileiro (e também do Latino-Americano) tão envolvente. Uma obra que une o satírico com a melancolia, carregada do regionalismo que faz das produções nacionais grandes viagens ao interior de nossa continentalidade. Deberton flerta com um realismo mágico, sem precisar tirá-lo do bolso. Parece entender que vive em um país onde já precisamos nos valer dessa abordagem. Pacarrete talvez não tenha sequer percebido o que aconteceu no país nos últimos trinta anos. Não porque Russas ficou de fora das últimas rotações da Terra, mas porque é uma mulher firme em suas convicções – e sua vivência depende disso. Ouve suas músicas em long play, resiste a converter para DVD seus VHS preferidos. Talvez nem fará falta, porque de certo modo somos uma nação que girou tanto que parece ter dado a volta completa – retornando para o mesmo lugar.
As intervenções da “realidade” mostram o quão dura é a vida de Pacarrete, que pode ser entendida como alguém com mania de perseguição ou colocada à margem por uma sociedade que entendeu por bem lhe abandonar. É possível que aqueles que veem a protagonista como a arte materializada (não apenas a arte clássica, estamos todos sendo jogados na vala), se confortem com a segunda visão. Ela busca a manutenção de sua dignidade, se diz forte como um mandacaru. Não cederá jamais àqueles que não vejam a obra de um artista como algo único. Em um dos pontos altos do longa-metragem, um debate sobre balé e feijão não deixa dúvidas disso.
Allan Deberton faz uma linda composição cênica, carregando de sobriedade visual uma obra coerente com sua narrativa. Não abre mão de um estilismo vistoso, usa luz e sombra sempre que vê a oportunidade de ser ainda mais arrebatador sem que o foco na trama se perca. Marcélia Cartaxo já entregaria uma das grandes interpretações dos últimos anos durante o tempo em que nos mostra uma Pacarrete que vive para performar. Todavia, nos trinta minutos finais ela consegue ir além, ela dobra a meta – parafraseando uma antiga amiga de luta.
Já na cena final, que dá para imaginar a receptividade em Gramado ou no Festival do Rio dada a magnitude da sequência, o poder de síntese da obra e a consolidação das camadas propostas por Deberton, batem diferente para quem vê na semana do Festival Espaço Itaú Play. É outro contexto assisti-lo prestes a completar quatro meses de isolamento social sem esquecer do abandono dos pontos de cultura presenciais (quantos cinemas e teatros não se recuperarão e sequer reabrirão?). Só que Pacarrete já vivia em um mundo que estava perto do fim. Já transportava para dentro de sua casa o que entende como a melhor maneira de existir, as suas próprias regras. Até o filme se jogar no mundo, ela era a arte. Agora ela é muito mais, o poder de sua mensagem a torna a própria vida. E a lição que ela nos dá é que, se ainda existimos, mesmo sem querer, resistimos.
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