Sinopse: Há muitos anos, Cebaldo se despediu de sua família, que faz parte da população indígena do Panamá. Agora, ele trabalha num porto no norte de Portugal e todas as noites é contagiado por uma sensação de nostalgia. Em sua solidão, as lembranças o afastam de sua rotina diária e o mergulham em uma jornada de volta à sua aldeia em Guna Yala, onde um médico botânico o confronta com a impossibilidade de retornar ao passado.
Direção: Ana Elena Tejera
Título Original: Panquiaco (2020)
Gênero: Documentário Dramático
Duração: 1h 20min
País: Panamá
Depois da Febre
Apesar de presentes significativamente apenas na Colômbia, a cultura dos kogis permanece em outros pontos das Américas. É a partir de um poema que fala da criação do mundo na visão deste povo que “Panquiaco” e inicia sua trajetória. Com um primeiro ato em Portugal, o filme ganhou estreia em circuito no país europeu nesse mês e, após ser apresentados no Festival de Roterdã e no Hot Docs, chega ao público brasileiro na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Mais do que uma cineasta, a formação filosófica e as pesquisas e projetos de conservação audiovisual fazem de Ana Elena Tejera mais uma novo nome do cinema latino-americano, sem dúvida de carreira promissora. Aliando o academicismo e a prática audiovisual, ela inicia sua formação na Psicologia e já dentro do cinema, tem como professores Pedro Costa, Béla Tar e Patricio Guzman. Talvez por isso sua obra seja de uma complexidade que, ao mesmo tempo que desnuda o personagem, expande nosso olhar por um território, sem deixar de ser profundamente sensível.
Aqui a narrativa parte do saudosismo de Cebaldo (Cebaldo de León Smith), panamenho radicado em Portugal que decide voltar à sua aldeia. A diretora faz nos primeiros momentos do longa-metragem uma bonita composição de personagem. Transita entre o sonho sobre o passado e as projeções do presente a partir da leitura de cartas e fitas enviadas por parentes e amigos do Panamá. Essa febre de nostalgia vai aumentando em uma condução bem mais imagética do que calcada na verbalização. Há um prolongamento da extensão de sequências, porém, não tão marcadas como Maya Da-Rin fez em “A Febre” (2019). A montagem do filme de Tejera torna a trama formatada mais sintética e até mais aprazível.
Todavia, há algumas quebras provocadas pela poematização, fruto de um hibridismo da obra. “Panquiaco” é principalmente documental, mesmo se valendo de uma premissa ficcional. O Cebaldo verdadeiro, por exemplo, é um antropólogo e professor que precisa fazer duas imersões: a primeira dentro da formação de seu personagem na Vila, onde trabalhará no porto local; a segunda quando retorna ao Panamá. No percurso, a cineasta propõe o belo exercício de “criação de mundo”, como se define o dom de um poeta. Uma fábula de marinheiro, que usa a água como grande metáfora da fluidez da existência – ou da paralisia da mesma. Trata-se duas atividades, a do poeta e do marinheiro, quase integralmente contemplativas – portanto, de um diálogo natural. Além disso, a possibilidade de criação de mundo deve ser bem instigante para quem, na vida real, tem a Antropologia como objeto de estudo.
Até que somos levados a Guna Yala, um centro de resistência indígena na América Latina. A luta dos povos originários há cerca de um século chegou a criar um movimento separatista que não aceitava o etnocídio hispânico. Por ser área estratégica para os Estados Unidos, o imperialismo ianque interviu, claro, mantendo a unidade federativa. Porém, a ancestralidade não se desapega de um espaço com tanta facilidade. Esse diálogo visual surge nas representações com a utilização de uma bandeira contendo a suástica (que, antes da vinculação ao nazismo era um símbolo religioso muito comum). Em “Panquiaco” também somos apresentados a uma versão atualizada de Vasco Balboa, um dos primeiro desbravadores do território chamado pelos europeus de Novo Mundo.
Cebaldo, ao chegar na província, apresenta uma imediata mudança de comportamento. É quando a “virada de chave” para o documental se materaliza, com o ator/pesquisador assumindo uma postura ativa, de (re)descobrimentos. Entrevistando locais e trazendo parte da cultura dos indígenas, a viagem do longa-metragem vai ficando mais objetivamente imersiva, permitindo a aplicação da antropologia do próprio autor/condutor das ações. Depois vai se apegando às propriedades medicinais locais, em que o protagonista começa a preparar sua alma para uma nova viagem – seja ela qual for. O Cebaldo verdadeiro, então, cumpre sua missão como protagonista do que lhe cabe de ficcional e aliado de narrativa no que diz respeito ao documental. A potência imagética é toda de Tejera, claro, mas a participação de Léon Smith é fundamental.
“Panquiaco” mantém sua aura lúdica ao mesmo tempo em que equilibra a ancestralidade milenar com a mais próxima, aquela identificada nas relações familiares. Nos faz projetar não apenas um retorno a um território, mas também a manipulação do alinhamento temporal, onde reencontraríamos espaços e afetos com o conhecimento que temos hoje. Mesmo com o verde tomando o lugar do azul, em uma ambientação mais florestal, a água permanece como grande elemento de condução das representações do filme. Instigante, permite a compreensão do espectador que não conhece tanto a história do Panamá com as referências visuais e as verbalizações que nos convocam a saber. Afinal, o poder de uma criação audiovisual com esta deve sempre ter esse viés convocatório mesmo. Um processo de captação de imagens em dois continentes que durou dois anos e faz de Ana Elena Tejera mais uma excepcional realizadora que carrega de humanidade suas obras.
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