Mosquito

Mosquito João Nuno Pinto Crítica Filme Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020 Sinopse: Zacarias, um jovem português de 17 anos, sonha em viver grandes aventuras. Por isso, ele se alista no Exército durante a Primeira Guerra Mundial. É enviado a Moçambique, na África, com a missão de defender a colônia portuguesa da invasão alemã. Zacarias, porém, contrai malária e é deixado para trás quando seu pelotão segue rumo ao front de batalha. O rapaz não se dá por vencido e parte, sozinho, para alcançar o esquadrão. Ainda sofrendo os efeitos da enfermidade, ele passa a ter dificuldade em distinguir a realidade das alucinações que vem tendo. Em sua jornada, ele encontra – ou acredita encontrar – animais selvagens, desertores alemães e colonos perdidos. O roteiro de Mosquito é baseado na história real do avô do diretor, que foi um dos soldados mandados a Moçambique na guerra.
Direção: João Nuno Pinto
Título Original: Mosquito (2020)
Gênero: Guerra
Duração: 2h 2min
País: Portugal | Brasil | França | Moçambique

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Reparações e Desejos

Atualizações de gêneros são sempre bem-vindas no cinema, ainda mais quando propostas por uma produção fora das zonas centrais dos radares do mercado audiovisual. Antes que você aceite que “Mosquito” é um bom filme de guerra, que se utiliza de técnicas de imersão no conflito usando a câmera na mão ao estilo Terrence Malick em “Além da Linha Vermelha” (1998), saiba que o filme é isso – também. Limitar à leitura de forma é diminuir o valor da obra do cineasta português João Nuno Pinto, apesar de atestá-la sua qualidade. Nem sempre essas atualizações são bem-sucedidas. Para lembrar uma do circuito de festivais do ano passado, o terror que se vale da ancestralidade promovido pelo francês Bertrand Bonello gerou o equivocado “Zombi Child” (2019), por exemplo.

Apresentado no Festival de Roterdã e exibido na Competição Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa-metragem conta a história de Zacarias (João Nunes Monteiro), jovem soldado lotado em Moçambique no auge da Primeira Guerra Mundial. Formatado em estrutura clássica de três atos, traz no primeiro pequenos flashbacks em que podemos compreender a projeção do rapaz sobre a experiência a ser vivida. Ela, claro, é a pior possível. Dentro de uma lógica imperialista, opressora e misógina, o que soldados como ele esperam encontrar são longas caminhadas por lugares inóspitos, algumas trocas de tiros e o desrespeito à dignidade da população local.

Baseado na história do avô do diretor, “Mosquito” se vale de supostas alucinações para tratar das diversas formas de esmagamentos, desrespeitos e reparações possíveis. Faz isso de forma triangular, relacionando portugueses, o povo macua e alemães. Com isso, consegue uma trama que se subverte e altera a ideia de oprimido. Apesar de Zacarias ser o clássico protagonista e a partir dele todas as visões do filme são representadas, Nuno Pinto não deixa de lado as formas de expressão que tanto nos incomoda nos últimos tempos. O que seria um simples estágio de suspensão, causado pela expectativa de um embate de tropas, gera por parte dos colonizadores um apego à tirania, objetificando corpos das mulheres e tratando os homens da localidade como funcionários que flertam com a escravidão.

É justamente essa perspectiva crítica que amplia a potência do longa-metragem, de fato, muito bem produzido. Ao adentrar em território desconhecido, o personagem vivido por Monteiro se torna dependente do povo local. Acometido de malária, precisa se apegar às conduções e tratamentos dos verdadeiros donos daquela terra. Eles permitem algumas concessões, quando a direção nos revela representações de manifestações culturais da região. Porém, quase como um desejo imediato de reparação histórica, eles tentam infligir a Zacarias as mesmas dores que os portugueses promoveram na África (e na América) através dos séculos anteriores. Ele será violentado de todas as formas, terá seu corpo objetificado da mesma maneira com a qual os seus ancestrais fizeram com os daqueles que agora lhe dominam.

O que seriam problemas mais solucionáveis como a barreira linguística, se tornam um misto de incompreensão e revolta. Curioso que, mesmo se entendendo como injustiçado naquela situação, não parece ter o soldado sofrido um abalo na sua certeza da condição de dominador nos momentos iniciais. Então, ele vive sua própria odisseia do oprimido do início do segundo ato até a metade do terceiro e, mesmo assim, seguirá os preceitos daquela visão de mundo que lhe foi originalmente mostrada. “Mosquito” cresce mesmo no momento de retomada de poder por parte de Zacarias, quando ele já atravessou um processo de releitura de suas convicções. É quando a saga do personagem atinge um contraponto, a oportunidade dele reparar o modus operandi que a situação de guerra lhe vende.

Isso acontece quando o último vértice do triângulo, o da invasão alemã, ganha a tela. Instigado a agir diferente, depois de uma trajetória que se revela uma lição, o homem vê que sua ação é limitada. Neste caso, pela instituição do Exército, pela hierarquia e, por que não ampliar?, pela construção social do que é uma guerra. Abordar a colonização destruidora e o racismo como consequências do avanço territorial português já seria o suficiente para trazer ao filme reais possibilidades de diálogo com o espectador brasileiro. Mas, João Nuno Pinto vai além, universalizando sua obra com linguagem, narrativa e estética de cinema comercial. Confirma que estamos diante de uma leitura atualizada ao trazer um estranho (e moderno) design de som, com representações que perturbam nossa leitura da própria diegese que se busca ali. Ainda traz um bonito trabalho de pesquisa nos créditos finais, que lembra muito o curta-metragem “Uma História da África“, dirigido por Billy Woodberry e por nós assistido no Festival Ecrã desse ano.

Mosquito” acaba, portanto, sendo sobre um filme liberdade. Como é valiosa a ponto de desejarmos apenas ela quando a perdemos. Mais do que formas de reparações ou promoções de justiça, o objetivo principal a alcançarmos deve ser nossa autodeterminação. Uma mensagem que o cineasta transporta para a sua própria forma de se expressar, com representações capazes de agradar do espectador mais escapista àquele totalmente imerso em todas as provocações que o bom cinema nos faz.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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