Sinopse: O dia a dia de moradores da maior planície alagada do mundo, no coração da América do Sul, um dos locais mais desafiadores para o ser humano. Partindo do olhar dos personagens, vamos entender melhor o frágil equilíbrio entre homem e natureza num lugar onde é impossível não entender que somos parte de algo muito maior, no qual o movimento das secas e das enchentes determina a forma de viver.
Direção: Eduardo Nunes e Izabella Faya
Título Original: Pantanal: A Boa Inocência de Suas Origens (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 15min
País: Brasil
Etnografia em Extinção
“Pantanal: A Boa Inocência de Nossas Origens“, produzido pela 3 Tabela Filmes e distribuído pela Elo Company, toca fundo em uma nova era de destruição do planeta, aquela que finalmente atingirá de forma inapelável as bases de nossa sobrevivência. Não satisfeitos em observar as movimentações de outras espécies, em ecossistemas profundamente alterados pela ação humana, agora estamos diante de caminho que nos forçará cada vez mais a transitar, abdicar da formação de raízes. Então, o documentário dirigido por Eduardo Nunes e Izabella Faya, revisita um dos biomas mais espetaculares do planeta para nos revelar a situação atual.
O longa-metragem se pauta no tradicionalismo narrativo. Aborda, a partir de depoimentos que lhe valem de âncoras dos assuntos tratados, um leque de questões. Elas envolvem os arquétipos de moradores da região pantaneiras, como profissionais da pesca, sertanejos e pantaneiros. Com o auxílio da Embrapa na produção, a primeira fase do filme foca nas dificuldades, cada vez maiores, da manutenção da vida e da atividade cultural (no sentido antropológico) dos pescadores do Pantanal. Ciclos cada vez mais longos de migração para obter alimento e deslocamentos cada vez maiores – ou seja, um nomadismo laboral forçado.
As políticas nacionais e estaduais da pesca são mencionadas, com críticas às ausências de fomento à atividade. Porém, ao lado do ar desolador de “Pantanal: A Boa Inocência de Nossas Origens” no que tange às comunidades ribeirinhas, está a relação mal resolvida com a Natureza. Ao tornar inabitável alguns espaços para determinadas espécies, coagimos elas – por instinto – o ocuparem outros. Um fenômeno que atinge outros territórios, até mesmo nos centros urbanos. O que chamamos de “invasão” quase sempre é a busca por dignidade, tanto quando falamos de humanos quanto dos animais em geral.
O documentário também aplica ferramentas narrativas carregadas de tradicionalismo, o que facilita a identificação e comunicação com parte dos espectadores. Intercala as lindas captações de imagens, de uma paisagem que consegue nos deslumbrar por ser menos explorada que o habitual com poemas de Manoel de Barros, por exemplo. “As águas são a epifania da criação“, diz um de seus versos mais famosos e título de uma exposição fotográfica em 2019. A água, o grande elemento do planeta, responsável pela nossa existência, ganha significado e simbolismo ainda maiores no Pantanal. Seu fluxo e suas marés nos mantém no constante estado de incerteza. Nunca saberemos qual ano será o último para partes de um bioma que convive com seca e cheias – e depende delas para intensas migrações de espécies.
Já as canções de Almir Sater, ainda que carregadas de uma aura romântica cada vez mais difícil de carregar enquanto premissa, denotam um regionalismo puro e perdido em uma sociedade que se abraça cada vez mais com o grande vilão dos nossos tempos: o agronegócio. Uma mudança cultural e de leitura de espaços, que se reflete nos hábitos de consumo e na própria ideia de progresso. O Brasil já passou por isso há algumas décadas e deixou um rastro de destruição e mortes – seja por violência ou pela fome. Algumas mensagens importantes nesse sentido estão presentes no filme. Desde o caráter um pouco mais industrial da viola de cocho (apesar do seu reconhecimento como patrimônio imaterial ter gerado um dossiê com modo de fazer específico pelo IPHAN), até a constatação de que a cavalgada é uma atividade pouco identificada entre os mais jovens – algo impensável em uma área como aquela há poucas décadas.
O documentário também perpassa pela questão do direito à terra e de como as espoliações aconteceram a partir do momento em que a agricultura entendeu a potencialidade da região – reflexo da destruição consumada e bem-sucedida em muitas partes da Amazônia, outro bioma desconfigurado no último século. Um apagamento de histórias e direitos feita em parceria com o poder institucionalizado, naquela velha junção de governos e coronéis, que pós-modernidade nenhuma subverte. Se pensarmos em outros exemplares do gênero como “Os Despossuídos“, vemos que essa política de destruir o pequeno produtor, esmagá-lo financeiramente, é uma tática também em outros países do mundo. Fomentar, portanto, um modo de vida vinculados a valores modernos e dinâmicos é parte do processo. O reencontro com a raiz sertaneja tradicional, de certa maneira, não deixa de ser uma reflexão interessante – desde que se saiba separar valores antigos que não nos comportam mais, como bem trabalha ficcionalmente o filme “Querência” (2019).
Dentre essa pluralidade de representações, “Pantanal: A Boa Inocência de Nossas Origens” também traz a religiosidade, notadamente o Catolicismo. Aqui está outro ponto que nos vincula a um tradicionalismo de uma cultura que parece no caminho da extinção. Ela morrerá antes de seus representantes – e, sem dúvida, antes daquele ecossistema. A Natureza encontra seu caminho, mesmo que seja nos expurgando de certos territórios. Escolhas que vinculam a obra à beleza da região, cores e luzes naturalmente esplendorosas, dividem espaço com falas capazes de trazer o alerta de que estamos diante de algumas imagens que nunca mais serão captadas.
Ouça “Milhões de Estrelas”, de Almir Sater: