Parque Oeste

Parque Oeste

Sinopse: Depois de ser vítima de uma violenta desocupação ocorrida em Goiânia, no ano de 2005, uma mulher reconstrói sua vida a partir da luta por moradia.
Direção: Fabiana Assis
Título Original: Parque Oeste (2018)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil

Parque Oeste Imagem

Acreditar é uma Escolha

Parque Oeste“, de Fabiana Assis, encerra com muita força o recorte Programa Despejo Zero da Mostra Lona 2020. Não apenas pela obra em si, que traz registros históricos em processo de apagamento, com importantes denúncias sobre a atuação do Poder Público. Mas vale colocar na conta a relevância como produto audiovisual, merecidamente reconhecido na 22ª Mostra de Tiradentes, que em 2019 lhe concedeu o Troféu Carlos Reichenbach, dado pelo Júri Jovem ao melhor título da Mostra Olhos Livres.

Na motivação do Júri para a escolha do filme, uma síntese do que – à primeira vista – salta aos olhos de quem assiste ao longa-metragem, principalmente em um período em que muitas outras produções da mesma temática passa por nossas vistas. Vale a pena citar: “cuidado e dignidade de se filmar o sofrimento, sem suavizar o horrível de suas imagens, ou nele se estagnar, por mostrar um futuro a ser construído por corpos que, mesmo atravessados pelo risco constante do presente, seguem adiante, e por ressoar o tremor da vida que resiste, sempre, porque essa é sua única possibilidade”.

A não estagnação de Fabiana Assis é a principal característica de “Parque Oeste“. Há uma perturbação natural pelas imagens dos ataques policiais nas tentativas de desocupação. Muitos tiros e as informações de mortes de moradores chocam, mesmo a quem vive uma realidade carioca – a da zona norte, em que o som das balas é a trilha sonora de muitas madrugadas. O foco é documentar a vida de Eromilde, esposa de Pedro – uma das duas vítimas “oficiais” da desocupação que ocorreu no hoje bairro Real Conquista em 2005 – quando ainda era chamado de Parque Oeste Industrial. Uma área cujos moradores não puderam se contentar com a frustração de um programa habitacional prometido e nunca comprido pelo Poder Público.

O Estado brasileiro olha seus cidadãos de cima para baixo – exceto a elite, a qual olha de lado. Com isso, o fato de um abandono de programa governamental gerar banho de sangue é algo que não deveria mais causar espanto. Tanto falamos de governos genocidas e massacres a povos nos últimos tempos. Em “Parque Oeste” ele é exposto, como se desenhasse aos negacionistas da profunda crise na sociedade brasileira. Um Governador que, não contente com o estelionato eleitoral, ajuda a promover a desocupação do que antes era uma zona de desova e de desmanche de carros. Se vale do capital especulativo imobiliário ao perdoar dívidas tributárias e facilitar renegociações. A rotina de quem tem os direitos básicos sob risco é cruel – como pudemos assistir em inúmeras produções dentro dos recortes da Mostra Lona.

Claro que em momentos como esse em que estamos vivendo, o Estado somente confirma quais são seus alvos e como sua atuação é torpe. A saúde pública, sempre um balcão de negócios, virou ferramenta de capital político na pandemia de Covid-19. No que tange à moradia, a banalização da vida – como bem mostrado – sempre foi fator preponderante nas decisões. Os métodos são conhecidos. No caso das ações em comunidades, a Polícia nega que mortes existiram e depois tiram autos de resistência pré-fabricados do bolso, alegando legítima defesa de quem ataca. Mas o que Fabiana Assis faz é desvincular o longa-metragem do caminho único da barbárie.

O Júri de Tiradentes vê a resistência como única possibilidade, mas é interessante notar que as formas dessa resistência se manifestar são múltiplas. Isso que torna o filme tão envolvente. Apesar da vida de quem luta pela terra ter um ar de tragédia anunciada, há processos dentro do processo. Eromilde, em suas falas, mostra a importância de manutenção da posse, consolidação e ampliação da mesma. Em paralelo, nunca deve ser abandonada a busca pela justiça. Só assim é possível reconhecer os assassinatos de Pedro e Wagner – e posteriormente das mortes antes invisíveis, que obras audiovisuais como “Parque Oeste” tem como função precípua evitar futuros apagamentos.

Criando um paralelismo com a construção civil propriamente dita, Eromilde não apenas constrói, mas solidifica e repara. A reparação histórica, que somente a fé de que um dia chegará e será plena mantém a sociedade viva, respirando o oxigênio da Justiça – mesmo que por vezes parecendo meramente um desejo. A semente da sociabilização, gerando o desenvolvimento de um senso comunitário, é plantada na parte final. A ideia de nomear o bairro como Real Conquista encerra um arco brilhantemente executado por Fabiana Assis e uma talentosa equipe.

Ainda há a força final da obra”: as palavras do rapper GOG, pioneiro do movimento no Distrito Federal – que em 2020 completa trinta anos de carreira. Ele sampleou Lílian Knapp, que após uma longa trajetória nos anos 1960 e 1970 na dupla Leno e Lilian, usou um sucesso em espanhol, com letra de Paulo Coelho, para obter um grito de liberdade artística em sua carreira solo. Fazendo referência a outra canção da dupla, esta da época da Jovem Guarda, “Eu Sou Rebelde” parece mais um choro de uma “pobre menina que não tem ninguém”.

Só que o rap, em sua maneira de se apropriar para ressignificar (um conceito que pode ser estendido às ocupações, claro), se vale dos versos da loirinha inocente da turma do Roberto para trazer uma canção que sintetiza o massacre revisitado por Fabiana Assis em “Parque Oeste“. Um episódio onde dúvidas serem suscitadas é normal. Mas GOG, no calor dos acontecimentos em 2006, já dizia – e nós concordamos: “prefiro acreditar no povo“.

Ouça “Sonho Real”, de GOG:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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