Programa Personagem de Cinema | Parte II

Mostra Cinemas do Brasil Pôster

Programa Personagem de Cinema | Parte II

Mostra Cinemas do Brasil 2020

As Ficções que se Tornam Realidade

Zagati Edu Felistoque e Nereu Cerdeira Programa Personagem de Cinema
Zagati (Edu Felistoque e Nereu Cerdeira, 2001)

Abrindo a segunda parte do Programa Personagem de Cinema (recorte curatorial da Mostra Cinemas do Brasil) um curta-metragem que figura entre novos clássicos do objeto proposto pela Mostra. “Zagati“, lançado no ano de 2001 pelos cineastas Edu Felistoque e Nereu Cerdeira ainda figura na fase final da Era da Retomada. Vencedor do prêmio do Júri do 30º Festival de Gramado, que aconteceu em 2002, usa abordagem tradicional, com a adição de elementos que criam um estilo mais acurado – comum nos recortes curatoriais da época.

Outro ponto importante da obra é o forte teor social da sua proposta de narrativa. O filme conta a história de José Luiz Zagati, catador e agitador cultural de Taboão da Serra, no interior de São Paulo. Apaixonado por cinema desde os cinco anos, ele promovia sessões em sua comunidade a partir de rolos que encontrava no lixo.

A arte como sucata e a sucata como arte. Os cineastas trabalham bem essa relação. Envernizam as imagens com uma bonita fotografia em preto e branco, ao mesmo tempo que compõem a trilha sonora com sons de objetos recolhidos de descarte. Em uma realidade onde não há programação prévia, posto que depende de achados, Zagati é um dos mais democráticos exibidores.

Ele mesmo não compreende em que momento algo tão apaixonante como um filme pode se transformar, para determinada pessoa, em lixo. Vinte anos depois, vivemos em uma sociedade muito mais descartável – mesmo que materialmente as mídias tenham encontrado caminhos menos custosos. Agora, boa parte das produções são feitas para, ao final da sessão, serem atiradas para o esquecimento em nossa memória. É quando apaixonados como Zagati precisam existir para dar sentido a tudo isso.

Procurando Rita Evandro Freitas Curta-Metragem
Procurando Rita (Evandro Freitas, 2013)

Já “Procurando Rita” encontra um paralelo na Mostra Cinemas do Brasil e, vejam só, no meu próprio mundo de 2020. O curta-metragem, dirigido por Evandro Freitas, foi parte da produção da disciplina de documentários do curso de audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo Baiano.

De lá também saiu o bonito “Em Busca do cinema no Recôncavo”, que tratamos nesse texto do Programa Mulheres Gravando!, com direito a uma entrevista com a realizadora Elizabete Sampaio.

Aqui, Evandro traz como personagem o projecionista Adilson, que trabalhou em diversos cinemas do interior da Bahia, em especial o Cine-Teatro de Cachoeira, onde comandou a sala de exibição por quarenta anos. Essa importante figura dos antigos cinemas de rua, em uma época pré-digitalização, foi esmiuçada no longa-metragem “O Homem da Cabine“, também exibido no festival.

Já “Procurando Rita” resgata um pouco a aura artística desse ofício. O protagonista é visto por uma câmera que capta os movimentos, mas não nos entrega o som que sai dos fones nas orelhas de Seu Adilson. Ele ouve trilhas sonoras de produções antigas – e aqui há uma relação com o meu 2020. Na verdade com a do meu pai, o Cinéfilo nº 1 da minha existência. Há dez meses trancado em casa e sem ter outras atividades com a qual ver (e rever) sua coleção de filmes, ele passou o ano pesquisando, listando e organizando trilhas sonoras.

É curioso como a obra rompe essa conexão do som de forma direta, mas ela toma conta da narrativa do personagem. A forma como Adilson se posiciona o aproximam, de fato, de um artista. Se o longa-metragem paulistano deixou dúvidas, o curta-metragem baiano transforma em certeza.

O Contador de Filmes Elinaldo Rodrigues Programa Personagem de Cinema
O Contador de Filmes (Elinaldo Rodrigues, 2010)

É nesse resgate da minha própria histórica que encontro “O Contador de Filmes“. Ivan Araújo Costa, o Ivan Cineminha é apresentado pelas lentes de Elinaldo Rodrigues. Ele é daqueles cinéfilos que ultrapassam os desafios impostos por mudanças de espaços e linguagens do cinema.

Munido de seu caderno, ele anota (e decora de tanto que relê) todas as milhares de sessões as quais fez parte ao longo da vida. O curta-metragem começa o colocando em uma fria sala de shopping, mas a paixão que vem de dentro parece inabalável. É daqueles que respira cinema, um dos mais encantadores personagens de toda a Mostra Cinemas do Brasil.

Seu amor e memória são lembrados por outros entrevistados. Ivan se tornou amigo da roda de críticos da cidade e chegou a ser entrevistado por Jô Soares – quando conheceu o astro Anthonny Quinn. Enquanto existirem Cineminhas como ele, a arte audiovisual seguirá viva.

Calma, Monga, Calma! Petrônio Lorena Curta-Metragem
Calma, Monga, Calma! (Petrônio Lorena, 2011)

Encerrando o programa Personagem de Cinema, uma rara ficção assumida dentre as obras do festival. “Calma, Monga, Calma!” usa um expediente parecido com “O Fantasma de Glauber Rocha“, como bem analisou Roberta Mathias no outro texto sobre esse recorte curatorial.

Simulando um programa policialesco, trata de forma irônica a possibilidade fantástica de uma mulher-macaco assassina colecionar vítimas na cidade – enquanto a polícia procura pistas de seu paradeiro.

Talvez o mais curioso do curta-metragem seja o terço final. Apesar da pouca duração, ele tem um controle de narrativa notável e as outras partes – apesar de bem executadas – se aproximam em linguagem com outras produções. Todavia, quando se encaminha para a conclusão aberta, ele ousa brincar com a figura do analista – uma espécie de ampliação de tentáculos desses programas que invadiram a televisão nas últimas décadas (e quem não acredita que isso gere implicações na sociedade precisa sair da sua bolha).

Em um deboche final, a bancada do jornal reúne especialistas que tratam das conjunturas sociais, científicas, políticas e religiosas da Monga. Na busca por uma chancela dessa forma de comunicação, tentam dar um aprofundamento de questões que regurgitam aquele sensacionalismo. Com o passar do tempo, essa linguagem dentro do que se transformou o jornalismo gerou uma quantidade de ilações argumentativas que antes soavam absurdas – e hoje manobram parte da opinião pública. O que em 2011, ano de lançamento do filme, era uma fira ironia, hoje já soa distópico.

Calma, Monga, Calma!” ao fazer uma escolha estética acaba refletindo um fragmento da nossa falência enquanto sociedade.


Ficha Técnica do Programa Personagem de Cinema | Parte II

Zagati (Edu Felistoque e Nereu Cerdeira, 18′ – Brasil, 2001)
Sinopse: José Luiz Zagati, um catador de lixo de 52 anos, é apaixonado por cinema desde a infância. Tendo passado anos revirando o lixo dos outros, conseguiu juntar pedaços de filmes e de equipamentos suficientes para montar um uma pequena sala de projeção em sua própria garagem, onde aos domingos exibe filmes para a comunidade de Taboão da Serra.
Procurando Rita (Evandro Freitas, 7′ – Brasil, 2013)
Sinopse: Um ponto de vista e muitos de escuta. Procurando Rita busca a singular experiência de cinema vivida por Seu Adilson, projecionista do antigo Cine-Teatro Glória de Cachoeira, Bahia.
O Contador de Filmes (Elinaldo Rodrigues, 15′ – Brasil, 2010)
Sinopse: O culto ao cinema sob a ótica de Ivan “Cineminha”, personagem notório pela cultura cinematográfica que desenvolveu de forma autodidata. Filho de antigo dono de cinema, ele volta a cidade natal para revisitar suas memórias.
Calma, Monga, Calma! (Petrônio Lorena, 19′ – Brasil, 2011)
Sinopse: Psicopata misteriosa chama a atenção da polícia e do jornalismo investigativo a partir de ataques simiescos aos varões da sociedade recifense.

Clique aqui e conheça a página oficial da Mostra Cinemas do Brasil – No Mundo de 2020.

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Programa Personagem de Cinema | Parte II

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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