Sinopse: Rabiye Kurnaz é uma mãe turca-alemã e está determinada a lutar pela liberdade de seu filho, que foi acusado pelo governo norte-americano de terrorismo.
Direção: Andreas Dresen
Título Original: Rabiye Kurnaz gegen. George W. Bush (2022)
Gênero: Drama
Duração: 1h 59min
País: Alemanha | França
Liberdade x Identidade
Mais um destaque da mostra competitiva do Festival de Berlim 2022 em exibição especial no Festival do Rio dentro do serviço de streaming do Telecine, o drama “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush” é mais um que toca na ferida da gigante onda xenofóbica que assolou os países do Ocidente no século XXI. Desta vez, sai um pouco da atualidade e dá alguns passos atrás, para buscar as primeiras movimentações neste sentido. Ao contar a história de uma mãe que luta incansavelmente pela liberdade do filho, preso em Guantánamo sob acusação de terrorismo, o filme nos revela os jogos de poder e interesses políticos por trás do verniz diplomático pelo qual Estados Unidos e Europa, hipocritamente, tratavam tal questão.
No início de outubro de 2001, menos de um mês após o ataque ao World Trade Center e ao Pentágono, Murat Kurnaz (Abdullah Emre Öztürk) sai de sua casa em Bremen com o amigo Sedat (Hüseyin Ekici). De família turca, ele decide se converter ao Islamismo e estudar o Alcorão. Sua mãe, Rabiye (Meltem Kaptan), assustada com o atual panorama do mundo, teme que o filho seja vítima de uma lavagem cerebral. Afinal, o amigo de Murat confessa que seu desejo é se mudar para o Afeganistão. Meses depois, ela descobre que o filho está detido em Cuba, na prisão militar estadunidense. Um campo de detenção que será definido por Bernhard Docke (Alexander Scheer), advogado contratado por Rabiye para ajudar na libertação do jovem, como “uma terra de ninguém jurídica”.
A dor de uma mãe pela certeza da injustiça é o grande mote narrativo de “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush“. Com atuação especial de Kaptan e roteiro de Laila Stieler que não se importa em expor as engrenagens sujas do governo alemão vendido como progressista por Angela Markel, ambas foram agraciadas com Ursos de Prata em suas categorias na Berlinale deste ano. A história consegue articular bem a perseguição pela inocência com aspectos relacionados à identidade cultural. Isto é fundamental para que o espectador compreenda que nada é tão simples quanto parece.
Em determinado momento, esse reconhecimento enquanto nação é parte dos dilemas de Rabiye e do Dr. Docke. Pode ser em uma escolha de construção de imagem do diretor Andreas Dresen, por exemplo. Esta ocorre quando a mulher deixa o advogado na porta do estádio de futebol, onde ele encontra seus três filhos para assistir a uma partida do Werdem Bremen, time local. De dentro do carro, somos levados a compartilhar o olhar daquela mulher. À sua frente, quatro alemães brancos passando um final de semana feliz e inabalável, enquanto ela sofre, no mesmo território, por força de sua origem e pela escolha religiosa do filho. Mesmo assim, ela aparece logo depois preparando um apflestrudel, típica sobremesa alemã, para sua família.
Só que este embate em relação à identidade cultural também surge em momentos relevantes de desenvolvimento da narrativa. Quando Kurnaz começa a perder as esperanças de que a Alemanha fará algo por Murat, ela busca acolhimento na representação diplomática da Turquia. Uma medida que desafia qualquer um que deseja criar conceitos estanques de nação. E, na parte mais interessante do longa-metragem, Rabiye acompanhará de perto a ação proposta na Suprema Corte Americana. Uma vez em território dos Estados Unidos, ela não deixará de expressar sua cota de deslumbramento, mitigando a ideia de que há inimigos concretos neste percurso.
O que surge de maneira escancarada é a falta de vontade de relativizar outras manifestações culturais. A imprensa deturpa narrativas para justificar prisões excepcionais. Governos aliados à George W. Bush, como o alemão, fazem vistas grossas às injustiças cometidas contra os seus cidadãos. No vale-tudo contra o terrorismo, Murat Kurnaz foi apenas uma das milhares de vítimas. Até hoje, mais de vinte anos depois, Guantánamo mantém como detidos algumas dezenas de homens à espera de um julgamento justo.
Claro que há algumas pequenas licenças poéticas pelo olhar romantizado de Dresen. Feito na medida para que o longa-metragem ultrapasse a boa receptividade nos festivais e encontre público mais abrangente. Uma delas é exagerar no deslumbramento de Rabiye, que volta da América mais interessada em distribuir presentes e mostrar suvenires do próprio Exército dos Estados Unidos. Porém, o mais significativo, parece ser aquele que mostra os cidadãos comuns que atravessam a viagem dela a Washington como se compreendessem e validassem a luta dela por injustiça. É quase como se as manifestações xenofóbicas e discriminatórias fossem exclusividade do poder institucionalizado e não um traço daquela cultura.
Aqui podemos dizer que “Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush” flerta com certo maniqueísmo inocente, mas não a ponto de por a perder a maneira interessante como usa a identidade cultural como grande pêndulo de sua narrativa. Concessões tradicionalistas para um filme que precisa chegar às pessoas que parecem cada vez mais consumidas pelo discurso de ódio que vê no outro uma ameaça aos seus velhos hábitos.
Veja o Trailer: