Sinopse: “Rashomon” descreve um estupro e assassinato através dos relatos amplamente divergentes de quatro testemunhas, incluindo o próprio criminoso e, através de um médium (Fumiko Honma), a própria vítima. Japão, século XI. Um lenhador, um sacerdote e um camponês procuram refúgio de uma tempestade nas ruínas de pedra do Portão de Rashomon. O sacerdote conta detalhes de um julgamento que testemunhou, envolvendo o estupro de Masako e o assassinato do marido dela, Takehiro, um samurai. Em flashback é mostrado o julgamento do bandido Tajomaru, onde acontecem quatro testemunhos, inclusive de Takehiro através de um médium. Cada um é uma “verdade”, que entra em conflito com as outras.
Direção: Akira Kurosawa
Título Original: 羅生門 (1950)
Gênero: Crime | Drama | Mistério
Duração: 1h 28min
País: Japão
Honras Defendidas
Há semanas em que, confesso, os textos dos lançamentos da semana aqui na Apostila de Cinema são um pouco ácidos. Tudo que assistimos parece reproduzir narrativas em formatos engessados, com uma flagrante falta de criatividade e de inspiração dos realizadores. Depois uma outra semana começa e reflito se não exagerei um pouco. Afinal, o audiovisual é um meio pelo qual várias análises são possíveis – e é um entendimento aqui na plataforma que o ideal é buscar aquela que gera um conteúdo mais propositivo. Até que nos deparamos com algumas revisitações como “Rashomon“, de Akira Kurosawa – que completou setenta anos de seu Leão de Ouro no Festival de Veneza – e lembramos porque alguns filmes permanecem, enquanto que a maior parte se vai.
Quando o público apaixonado por Cinema começa a consumir longas-metragens em maior escala, é comum se apaixonar pelos primeiros que se debruçam sobre esta premissa: um evento ocorre e a narrativa nos levará para várias versões do fato, pelos pontos de vista dissonantes de alguns personagens. É uma forma de contar a história que até hoje funciona. “Ponto de Vista” (2008), por sinal, é um bom thriller da década passada disponível na Netflix com essa proposta. Porém, para uma geração que via a modernização da linguagem audiovisual em curso, esta obra japonesa (disponível no momento no Petra Belas Artes à La Carte) deve ter sido a primeira delas.
Em 1953, o longa-metragem foi indicado ao Oscar de direção de arte em preto e branco, em um momento em que a Academia entendeu que era necessário criar uma categoria específica para filmes internacionais. Entre 1947 e 1956, oito filmes receberam troféus honorários como filme estrangeiro lançado no circuito daquele ano – naquele foi “Brinquedo Proibido” (1952) de René Clément e em 1952 foi o próprio “Rashomon”, o primeiro dos três que o Japão receberia desta forma, se juntando a “Portal do Inferno” (1953) em 1955 e “Samurai: O Guerreiro Dominante” (1954) em 1956. Por ironia, quando se tornou uma categoria específica, o país foi finalista treze vezes mas só ganhou em 2009 pelo lindo “A Partida” (2008).
Porém, representando a União Soviética, Kurosawa ganharia em 1976 por “Dersu Uzala” (1975) e seria finalista em 1972 por “Dodeskaden – O Caminho da Vida” (1970) e 1981 com “Kagemusha, a Sombra do Samurai” (1980). Nos anos 1950 se consolidaria como um dos cineastas mais importantes de sua geração em realizações como “Viver” (1952) e “Os Sete Samurais” (1954). Produzindo até o início dos anos 90 (ele faleceu em 1998, aos 88 anos) não deverá demorar muito para aparecer de novo aqui na Apostila de Cinema.
O roteiro de Kurosawa se baseia nos textos de Ryūnosuke Akutagawa, publicado em 1922. O autor também modernizou a arte de seu país trazendo o conto que abandona a ideia de naturalismo e mergulha no pior da Humanidade. Por sinal, o cineasta aplica bem essa ideia, o que nos leva à busca pela verdade real como conceito impossível – no qual tratamos na crítica de “O Apartamento” (2016), do iraniano Asghar Farhadi. Se o naturalismo é uma versão estendida e exagerada do realismo, ao abandonar essa estética, tanto Akira quanto Ryūnosuke admitem que não há respostas certas para boa parte das perguntas. Curioso que um filme de setenta anos faz isso de forma simples e dinâmica e, mesmo assim, o espectador moderno ainda anseia por verossimilhanças sob qualquer prisma.
O longa-metragem começa em um dia de muita chuva, com três homens conversando. O que aparenta ser o mais velho, um lenhador (Takashi Shimura), começa a contar uma história que ouviu nos jardins do Palácio da Justiça. Ou seja, omite no primeiro momento que faz parte da investigação por trás do estupro de Masako (Michiko Kyô) e da morte do samurai Takehiro (Masayuki Mori), tendo como acusado Tajomaru (Toshiro Mifune). Os ouvintes são um sacerdote (Minoru Chiaki) e um servo (Kichijiro Ueda), o que nos faz projetar seus entendimentos com base em suas vivências e preceitos. Além disso, a dicotomia entre bem e mal ganha contornos alegóricos se pensarmos que aquele que ataca é conhecido por ser um bandido e o que é atacado tem como rótulo de servidor da sociedade a honra como base de seus atos.
Apesar de narrar uma sequência de desastres (naturais) como pestes, chuvas e terremotos, aquele senhor diz ter testemunhando o registro da história mais terrível a qual teve conhecimento. Terrível porque envolve a nossa natureza, que nos faz projetar atos semelhantes a partir das nossas individualidades e do livre-arbítrio. Quando se rotula obras como “Rashomon” como arte pura é porque ela cumpre com louvor a grande função dessas manifestações.
Enquanto linguagem, o diretor é um dos pioneiros do uso dos múltiplos flashbacks e da abordagem que exige da plateia construir em sua mente a existência de realidades paralelas – sem que se chegue a uma conclusão sobre o real. Apesar da comparação com “Cidadão Kane” (1941), o cineasta disse não ter visto a obra de Orson Welles antes de finalizar este projeto. A montagem do próprio Kurosawa é objeto de estudo até hoje e uma sessão do filme não encontrará tanta resistência daqueles que discriminam produções antigas e narrativas clássicas. Ainda é envolvente em grau máximo. A forma como a trama se desenvolve também permite ao olhar moderno total entendimento. No processo persecutório, temos o homem que encontrou o corpo de Takehiro, aquele que teve contato com a vítima em seu último dia de vida e o que capturou Tajomaru com os pertences do morto.
Chama a atenção o fato de que, em nenhum momento, vemos ou ouvimos qualquer palavra ou imagem relacionada ao investigador. É quase como se “Rashomon” fosse um convite para que a gente supra essa lacuna na tela, que façamos as vezes de julgadores. Com a assistência de Kurosawa, que coloca essa “entidade” para fazer as perguntas certas. Com a mutação de perspectiva, somos levados não apenas pelos caminhos da materialização dos atos, mas também das motivações por trás deles. Aliás, efeito rashomon se tornou parte do glossário básico da linguagem audiovisual.
As imagens que o diretor permite construir também se fixaram no imaginário da cinefilia. De tanto explorar angulações, demarcando enquanto proposta a ideia de buscar outros pontos de vista, se tornou a primeira obra cinematográfica a captar de forma direta a luz do sol. Porém, não é apenas isso. A câmera em perseguição quase inaugura uma forma de thriller que seria reproduzida dali em diante. Uma das primeiras vezes em que a portabilidade das ferramentas foi usada, apenas uma das inventividades. Conta com a construção de personagem de Mifune que usa como inspiração o comportamento de um leão na selva, enquanto figura máxima de poder daquele território.
Os flashbacks nos embrenha dentro das matas, sendo parte da ação e provando que Cinema é ir além de “apenas” contar uma boa história. As imagens captadas de forma simultânea, com mais de um aparelho, esgotam as chances dos famigerados erros de continuidade – e aqui reside um dos grandes problemas da produção contemporânea, parecendo para alguns uma barreira insuperável resolvida por ele há tanto tempo. Hoje há material bruto bem mais extenso, muito mais do que os 407 cortes de “Rashomon” e, mesmo assim, não chegamos nem perto da fluidez de uma narrativa como essa.
Outra inventividade foi colocar uma mistura que tornasse preta a água da densa chuva que cai na “linha presente” do filme, já que seria difícil enxergá-lo pela forma tradicional. Já nas oitivas dos testemunhos, o cineasta mantém a frontalidade dos enquadramentos, se alinhando à sensação já exposta de nos colocar “dentro”, na posição de ponto final daqueles múltiplos arcos ali costurados. Ao mesmo tempo, “Rashomon” não ignora os métodos anteriores. Com a trilha sonora de Fumio Hayasaka que remete aos épicos do período anterior à fala, nos traz longas sequências em que o diálogo é abandonado. Tanto quando Masako resiste aos primeiros ataques de Tajomaru , quanto nas vias de fato entre ele e Takehiro.
Usa apenas risos, gritos e outros aspectos na simbologia das comunicações entre humanos. Já as múltiplas leituras sobre honra ganham uma conotação essencial quando a versão da mulher é colocada na tela. Primeiro, ao mostrar o possível caminho em que os dois homens deslegitimam as palavras da mulher. É seguido por um poderoso monólogo de autoafirmação, que soa inoxidável nos novos tempos. A única desonra que geralmente é exposta em praça pública. Por fim, o debruçar em um futuro com um bebê que aparece como elemento de redenção.
Quando a defesa da honra encontra a impossibilidade de atingir a verdade real temos histórias terrivelmente inesquecíveis e contemporâneas como “Rashomon“. Afinal de contas, os mortos não mentem, como bem lembra um dos personagens em dado momento – o que pode colocar a perspectiva pelo segmento da médium vivida por Fumiko Honma sob um pilar de credibilidade. Um filme que tem a seu favor a grande prova que a arte busca para si: a do tempo, pelo qual ele navega como se não existisse mudança social capaz de destruí-lo.
Afinal de contas, parece que a única natureza incapaz de aplicar os conceitos de evolução é a humana, presa em suas amarras quando tocamos seus instintos mais primitivos. Talvez se resolva quando uma tempestade passa, mas sempre apresenta risco de novas consequências quando outras nuvens escuras reocupam os céus.
Veja o Trailer: