Sinopse: A frontalidade como profissão de fé: o cineasta argentino Perel estaciona seu carro frente à porta de edifícios que serviram de sede para indústrias ou empresas argentinas e, sobre um plano fixo, lê detalhadamente um relatório de 2015 do governo que elenca as maneiras como cada empresa sacrificou seus empregados politicamente ativos em prol da ditadura local. Sua voz projeta um passado sujo que permitiu a manutenção de um Estado autocrático pela conivência (e participação ativa) da elite econômica local. Revelador e doloroso, urgente e atemporal, “Responsabilidade Empresarial” é devastador ao recordar nossa história latina partilhada.
Direção: Jonathan Perel
Título Original: Responsabilidad Empresarial (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 8min
País: Argentina
Arquitetura da Impunidade
Ao longo de pouco mais de uma hora, “Responsabilidade Empresarial” se apresenta da forma mais crua que uma produção audiovisual pode ter, muito parecido com outra grande produção de 2020, o norte-americano “Gerações” (2020). O diretor Jonathan Perel, munido de um relatório que investigou a participação e contribuição de empresas no regime ditatorial militar argentino, atravessa o país e lê o trecho respectivo de cada corporação enquanto enquadra, de dentro de seu veículo, o prédio onde ocorreram aqueles crimes contra a humanidade. Uma viagem pelas áreas industriais argentinas e por uma arquitetura de impunidade. Escondidos pelo manto de proteção negocial, as mais duras atrocidades foram cometidas contra trabalhadores, boa parte líderes sindicais.
Quem imaginava que o documentário seria uma jornada expositiva dos atos dos agentes empresariais, se surpreende pela maneira como as escolhas de montagem da obra permitem que novas informações se somem a cada novo trecho. Das consequências diretas, com prisões, assassinatos e sequestros – deixando rastro de centenas de desaparecidos até hoje – o filme adentra por outros objetivos, vinculados mais ao capital do que ao prazer de esmagamento de um regime de exceção. Em uma jogada lógica, a perseguição aos empregados que questionavam as condições de trabalho, salários e benefícios, cumpria várias funções. A primeira era a de calar as vozes dissonantes e a segunda a de intimidar os outros funcionários da empresa. Todavia, no médio prazo, o que se identificou foi um aumento de produção mesmo com a queda (por vezes maior do que 50%) do quadro de pessoal de algumas fábricas.
As ditaduras sul-americanas trouxeram uma mistura de descrédito da política institucionalizada e profunda crise econômica. Ao mesmo tempo que parte da população identificou que direitos e liberdades eram perdidas, a manutenção de um mínimo sustento para si e suas famílias era prioridade. É assim que o extremismo ganha seu jogo. Portanto, mesmo que não surpreenda de todo, é fundamental o registro de “Responsabilidade Empresarial” de como algumas das ações dessas empresas ocorreram de forma coordenada, horas ou dias após o golpe de Estado de 1976. Além disso, antecipa as táticas de precarização do mercado de trabalho, que o audiovisual cada vez mais usa de objeto de sua produção – seja em documentários internacionais sobre os novos tempos como “O Custo do Transporte Global” (2016) ou no Brasil com o curta-metragem “Pega-se Facção” (2020).
Não fica nada de fora na cadeia de produção. O documentário expõe refinarias, mineradoras, a indústria têxtil e – nos nomes mais conhecidos – importantes multinacionais do setor automobilístico. Assim como ocorreu na ascensão nazista (e aqui há um interessante artigo sobre como a Volkswagen é filha de Hitler) a elite econômica é fundamental para o estabelecimento e consolidação dos regimes. Ao mesmo tempo, pelo lado da classe trabalhadora não há muita escolha quando as táticas violentas e torturantes são estabelecidas como regra.
O que Jonathan Perel faz, entretanto, é ir além da exposição, que contou, inclusive, com a presença de militares dentro dos estabelecimentos ou agindo nos bastidores. O faz de forma contundente, sem lapidações textuais. Com datas, nomes e informações completas. Todavia, o destaque da filme é a prisão gerada pela imagem. Ao trazer os prédios incolumimentes compondo as grandes cidades argentinas quase cinco décadas depois, aquela frieza da leitura do relatório tem o poder de provocar indignação. Exemplos de concessões renovadas que perduram e dívidas privadas milionárias estatizadas como forma de negociação – o que faz com que a Argentina esteja até hoje afundada em compromissos junto à agiotagem internacional.
Sob a desculpa de “temos que preservar os empregos” (já ouviu isso?), Ford, Alpargatas, Fiat e dezenas de outras corporações seguem ditando os rumos daquele país, apesar da mão invisível do mercado estar suja de sangue. “Responsabilidade Empresarial” produz imagens que nos leva a refletir que, por trás dessa aparente normalidade e plenitude da janela do carro Jonathan Perel, há o sofrimento de famílias separadas e vidas interrompidas em uma história que ainda não chegou ao fim.
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