Sinopse: Em uma jornada imprevisível por paisagens, tempos e imagens pautada pelo signo da experimentação, as profundezas de um vulcão ecoam os movimentos do cosmos, enquanto astronomia, geologia e cosmologia indígena se avizinham em um mosaico musical de texturas e ideias. O primeiro longa do diretor luso-americano aposta no fluxo indisciplinar do filme-ensaio ao manter o Havaí como núcleo irradiador, tanto uma circunscrição histórica quanto abstração conceitual, criando uma envolvente experiência sensorial às voltas com a natureza e a humanidade em plena era do Antropoceno.
Direção: Fern Silva
Título Original: Rock Bottom Riser (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: EUA
Larva de Esperança
Analisando por uma certa ótica “Rock Bottom Riser” contempla e sintetiza boa parte do que foi trazido pela seleção do 10º Olhar de Cinema, em sua maratona de mais de quarenta longas-metragens assistidos pela Apostila de Cinema. O documentário do norte-americano Fern Silva, filho de portugueses radicados nos Estados Unidos para fugir do regime ditatorial de Salazar já foi mencionado em nossa crítica de “virar mar / meer werden” (2021) por retomar questões envolvendo o ambientalismo.
Além disso, suas representações finais faz o mesmo com o surfe o que o argentino “Esqui” (2021) de Manque La Banca tinha feito em seu prólogo e epílogo. Brinca com a ideia de produções audiovisuais de canais esportivos, trazendo a sociedade de consumo de maneira estilizada e, na medida do possível alegórica. Essa é apenas uma das referências de cultura pop do cineasta, que parece ter controle sobre o esmagamento cultural do país em que nasceu sob outros locais. Ele pratica um múltiplo olhar crítico sobre seu território e, não coincidentemente, se desloca para o Havaí para construir sua narrativa.
Faltava aquele que foi o grande pilar de sustentação da edição 2021 do festival. Uma proposta-base que conecta quase todos os selecionados e coloca boa parte de seus realizadores, de todos os cantos do planeta, em viagens intimistas sobre memórias. As suas, podendo ser por revisitação, ressignificação ou investigação. As de pessoas próximos, dos povos ou territórios nos quais estão inseridos. Ou as recriadas em ficcionalidades mais realistas do que alguns exercícios lúdicos de documentários, digamos, mais “puros”.
Veja o Trailer:
Estava difícil mediar em “Rock Bottom Riser” esse elemento, até porque não é um aspecto obrigatório. O Olhar de Cinema não imputa limitações dentro dos recortes curatoriais, ele usa a melhor das opções, deixando o panorama audiovisual se construir dentro do evento. Só que essa conexão com a lembrança é atestada na conversa de Silva com Carla Italiano no canal oficial da mostra no YouTube – e que você assiste ao final da crítica. Não apenas a origem familiar do diretor está fora dos Estados Unidos, como ele conviveu, desde novo, com outras culturas no bairro em que morava.
Com isso, extrapola o mero olhar crítico sobre a sociedade norte-americana, ele consegue ampliar o campo de visão de modo a contextualizar à luz de outras comunidades e através dos tempos. E o tempo no longa-metragem é tão líquido quanto à receptividade da equipe curatorial do Olhar. Fern cria, sim, uma guia narrativa pelo fogo, da larva do vulcão Mauna Kea que margeia uma cidade. Ele retoma essa representação sempre que acha necessário, deixa a iminência do apocalipse – ou de um apocalipse local – em suspenso. Flerta com as produções do cinema comercial do seu país ao atrair aparatos científicos acompanhados de explicações tecnicistas.
É engraçado como esse expediente é tão forçado quando as ficções de Hollywood tentam nos convencer da possibilidade do real em obras futuristas, mas tão simples e nem um pouco romântico quando é, de fato, real. Começando pelo tempo-além, “Rock Bottom Riser” coloca a Astronomia de hoje com o mesmo peso da Cartografia até o século XVI. A Humanidade deveria se convencer logo que vive em uma bomba-relógio de sua existência, admitir que a única salvação para futuras (e talvez bem breves) gerações é a colonização espacial – assim como as dinâmicas e demandas da Europa os levarem a desbravar os mares, que deveria ser menos conhecido para o cidadão-comum da época do que as galáxias mais distantes da via láctea para qualquer um que abra o Google atualmente.
Porém, não nos conseguimos entender até hoje enquanto sociedade plural. Da representatividade atravessada da indústria cultural (ele pinça um exemplo de Dwayne Johnson e a ideia de que Samoa e Havaí – bem como outros arquipélagos – possuem suas particularidades não respeitadas), até a diferença que inviabiliza o diálogo no absurdo embate entre ciência e religião. Motivado por dramas e traumas pessoais, um senhor surge de início de forma alegórica e no final sob outra perspectiva representando aqueles que optam por apostar tudo na fé – e que merecem respeito também, claro.
O que nos leva às diferenças entre negacionistas, ignorantes, fiéis em seus preceitos e quem é apenas oportunista e mau-caráter. Nessa diferença tão fundamental, mas de nuances por vezes imperceptíveis, muitos optam por não dialogar. Assim a Humanidade e o planeta seguem, com perspectivas muito ruins para os próximos anos. Em outro texto dessa cobertura (que, confesso, já nem lembro qual) eu falei da dificuldade de ser um criador de imagem em um momento em que muitos a negam. Talvez o primeiro passo seja seguir o conselho de Paul Simon e ser a sua ilha, construir um mundo próprio de pessoas e seres que nos orbitam, extraindo o melhor desses satélites.
Mas, o que “Rock Bottom Riser” atesta é que, apenas isso, não é o suficiente. Talvez mantenha nossa sanidade por um tempo, mas novas crises como essa em que estamos agora se sucederão com a mesma dinâmica de tudo o que a alta tecnologia tem feito. A esperança é que, quando menos percebermos, estejamos todos a caminho de uma outra atmosfera para que possamos recomeçar e tentar não se autodestruir.
Assista à conversa entre Carla Italiano e Fern Silva sobre “Rock Bottom Riser”: