Sinopse: O mítico retorno ao lar se transfigura aqui em um re-exame dos papéis tradicionais em uma família, confrontados tanto por verdades há muito deixadas debaixo do tapete como, principalmente, pela radical alteridade que se impõe mesmo nas relações mais próximas. Dentro do modelo do documentário em primeira pessoa, tão visto atualmente, “Rumo ao Norte” se diferencia pelo tanto que o escopo parece se ampliar cena a cena, passando de uma pessoa para uma família para um lugar e uma época. Enquanto os temas se multiplicam, o filme foge de qualquer auto-comiseração, e segura um duro espelho que reflete também quem o assiste.
Direção: Angelo Madsen Minax
Título Original: North By Current (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 25min
País: EUA
A Difícil Arte de (Con)Viver
“Rumo ao Norte“, sem dúvida, é uma das produções assistidas pela Apostila de Cinema em 2021 que ressoará na minha mente por um bom tempo. Exibido na mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, o documentário dirigido e editado por Angelo Madsen Minax nos permite um leque de questões e percepções que ultrapassariam (e muito) uma análise dinâmica de um texto de cobertura de festival. Colocando sua família e, por consequência, sua história como objeto da obra, o cineasta produz imagens ao longo de cincos anos (2016 a 2020) e traça alguns paralelos muito impactantes.
No que me bateu mais forte, ele monta um triângulo na edição do filme – e parece ainda mais proposital essas triangulações quando, ao final da sessão, assisto à conversa dele com Eduardo Valente no canal oficial do Olhar no YouTube (e que você assiste ao final da crítica). Angelo pensou na estrutura em três atos, mas parece estilhaçar as narrativas em várias histórias, narrações e uso de arquivos de gravações caseiras. Porém, um deles é avassalador. Logo no início, a mãe do diretor em 2016 se corrige – não consigo precisar com qual intenção, ela parece falsear isso – no pronome pessoal de chamamento do filho.
Madsen é um homem trans e traz essa abordagem como um dos fatores. Chega a ouvir de sua irmã que as suas crises pessoais que a levaram aos caminhos do vício têm a questão identitária do irmão como algo preponderante. Algo muito forte, mas talvez não chegue nem perto do que sua mãe expõe no segundo vértice do triângulo, ao lembrar que – além de Kalla, sua neta que faleceu com dois anos – ela também perdeu uma filha. Essa surge em imagens de arquivo e é uma das possibilidades de voz que divide espaço com as intervenções em primeira pessoa do realizador. E que ele não quer limitar a uma identidade, como acontece na revelação (dos créditos) de que a voz feminina narrando em guarani em “King Kong en Assunción” (2020), por exemple, é a Morte.
Veja o Trailer:
Entretanto, a ponta final dessa dinâmica fílmica dentro da obra é reveladora. A mesma mãe é confrontada em 2020 em falas que agrediram muito a Angelo. Em um primeiro momento, ela afirma não se lembrar. Em um segundo, pede desculpas. Há um mar de mudanças em nossas vidas separadas por um período de cinco anos. Traumas antigos são mitigados, conclusões antes imutáveis por ideologias inflexíveis desaparecem na imensidão de ondas e, para usar um jargão, revemos nossos conceitos. Porém, em um filme de pouco mais de noventa minutos, uma montagem é capaz de nos confrontar – com nós mesmos.
Todo esse exercício aqui pinça trechos do documentário que, se muito, duram dois minutos. Há um desfile de agressões veladas e cumplicidade familiar misturadas, porque nossas vivências não se catalogam e se empilham como água e óleo. É mais como o encontro do rio com o mar, metáfora que coloca ponto final no longa-metragem. Na semana em que começou no Brasil o julgamento do assassinato de Henry Borel por um tribunal do júri que analisará a denúncia de infanticídio por sua mãe e padrasto, o primeiro ato mostra a morte de Kalla como questão importante, um pesadelo ainda maior na vida daquelas pessoas que quase leva a mais tragédia – e faz pensar sobre o quanto de injustiças ocorrem sob a desculpa de promoção da Justiça.
A edição não é tão afetada pela cronologia, Angelo se permite transitar de forma cíclica por aquelas representações. Faz recortes temáticos, que ganham protagonismo de acordo com o momento. Isso vai fazendo a experiência da sessão ser reflexiva, questionadora, dramática, existencialista, melancólica – em graus distintos. Quando percebe que tem ali uma obra moldada e em processo de montagem, retira o aspecto mais orgânico e ataca de forma menos sutil as possíveis propostas do corte final. E é do jogo, fica ainda mais especial assistir a essa reta de chegada enquanto vias possíveis de um discurso.
Com produção da Field of Vision, “Rumo ao Norte” termina com o que o povo Tupi chama de pororoca, expressão que relaciona essa confluência de águas com um estrondo. O filme bate de forma estrondosa na nossa mente, de fato. Começando com a neve do Michigan e as falas de seu realizador sobre nossa existência ser uma mistura de circunstâncias, vivências e escolhas – termina nos deixando com mais perguntas do que respostas. E com vontade de revê-lo, porque há muito ali sendo dito.
Assista à conversa entre Eduardo Valente e Angelo Madsen Minax sobre “Rumo ao Norte”: