Documentário sobre Michael Schumacher chegou na Netflix. Leia a crítica.
Sinopse: O espírito desbravador de Michael Schumacher deixou sua marca na história da Fórmula 1, e serve como guia para este documentário revelador.
Direção: Michael Wech | Hanns-Bruno Kammertöns | Vanessa Nöcker
Título Original: Schumacher (2021)
Gênero: Documentário | Biografia | Esporte
Duração: 1h 52min
País: Alemanha
Do Esporte Espetacular ao Arquivo Confidencial
O público brasileiro tomado pelo pachequismo não gostará nem um pouco de “Schumacher“, documentário que a Netflix lançou esta semana, um dos primeiros a reverberar a carreira do primeiro heptacampeão de Fórmula 1. Os fãs da categoria (há que nem considere o automobilismo esporte), também devem reclamar da ausência de revelações, novas informações ou de um histórico de vida e carreira que algumas roladas de página do Wikipédia já respondem.
Porém, há uma visão um pouco turva de ambos os grupos. O primeiro diz respeito ao recorte geracional. Afinal, por mais que a F1 tenha perdido muita popularidade no país (culpa de uma associação a vitórias de compatriotas, leitura atravessada da nossa sociedade), hoje vivemos a História no chamado “circo”. Daqui a pouco menos de três meses saberemos se o britânico Lewis Hamilton ultrapassará, ainda em 2021, o número de títulos do alemão, um dos poucos recordes que falta superar em sua trajetória profissional. Nada mais justo do que trazer uma das grandes personalidades para o centro das atenções – e aqui há, sim, uma busca por apresentar e elencar os feitos de Michael por parte dos diretores e roteiristas Michael Wech, Hanns-Bruno Kammertöns e Vanessa Nöcker.
Dentro dessa proposta, encontramos o grande diferencial de narrativa sobre a Fórmula 1 na obra. Ao contrário do que testemunhamos ao longo de todo o período em que a Rede Globo era detentora dos direitos de transmissão e de todas as imagens de arquivo da categoria, Ayrton Senna surge no terço inicial do longa-metragem na posição de antagonista. Veja bem, não é um vilão, com defeitos inconciliáveis. Porém, ele se apresenta como o líder de um grupo de veteranos que via em Schumacher uma ameaça às futuras conquistas. Tentava enquadrá-lo pelo respeito, hierarquizando pela idade. Ele, Nigel Mansell, Alain Prost, Jean Alesi, dentre outros, estavam certos. A juventude era uma ameaça para as engrenagens da F1 e hoje são águas passadas: cada vez mais os pilotos ascendem mais novos.
É curioso porque os momentos iniciais de “Schumacher” possuem uma montagem que lembra a forma messiânica como Senna sempre foi apresentado. Uma volta dentro do cockpit na icônica pista do GP de Mônaco e falas do ídolo sobre seu ofício e relacionando a busca pela perfeição com o sucesso, de forma genérica a ponto de tocar o coração de todos os que o admiram. Aliás, uma prerrogativa que o esporte se vale e que é fundamental para seu impacto cultural na sociedade. Falo isso não apenas enquanto pessoa que ama acompanhar (tanto as competições em geral como a própria F1), que teve como criança Ayrton como ídolo, mas que aprendeu que o primeiro passo para se decepcionar com alguém é colocá-lo nessa posição.
Vale mencionar que aquilo que todos suspeitavam parece ter se tornado, finalmente, a verdade: o piloto brasileiro faleceu na pista do GP de San Marino – e as notícias foram postergadas ao máximo para que a corrida não fosse interrompida em um trauma que abalaria muito a categoria. Há uma versão paralela nas falas antigas do próprio Michael, mas soa datada perto dos testemunhos colhidos para o filme.
Aqui no Brasil temos as nossas cotas de tretas envolvendo Senna, Nelson Piquet (e seu carinho pelo atual Presidente da República), além dos nomes que seguiram após a morte do primeiro em 1994. Pessoas talentosas, como Rubens Barichello e Felipe Massa, que foram algumas das sombras do período mais vitorioso de Schumacher, mas totalmente limados do corte final, de quase duas horas. Antes que o pachequismo grite mais uma vez, é preciso compreender o que motivou a essa escolha. O filme se concentra bem mais no período de formação do piloto, seus desafios nos primeiros títulos com a pequena Benneton e os anos em que ele comeu grama para encontrar a redenção da Ferrari entre 2000 e 2004, com um pentacampeonato que parecia impossível – e ele conseguiu em sequência.
Uma editoria que soa acertada, apesar de ser chapa-branca nos tropeços provocados pelo excesso de agressividade em seu ofício (um legado que tornou a atual rixa entre Hamilton e Max Verstappen uma espécie de confronto direto entre a frieza técnica e o talento arrojado de Senna e Schumacher que o destino nos negou). Dali para frente, Michael foi tão dominante, que o documentário opta por tratar do período em flashes. Até que chegamos em tudo o que envolve a atual condição do alemão, que já foi objeto de mistério e que a obra parece suplantar algumas dúvidas.
Pela fala de sua esposa, Corinna, há uma preocupação desde o início em mostrar como a fama afetava Michael. Muito vaidoso na pista, não admitindo erros (e se negando a admitir que errou), ele não levava essa competitividade e sanha pela idolatria para fora daquele território. Não gostava de imprensa e publicidade – ou pelo menos de enxergá-la como parte de seu trabalho. Isso sempre foi notório e quem acompanhava as notícias nas férias dos pilotos sabe que ele se isolava com a família em alguma de suas propriedades pelo mundo. Fato este que levou muita gente a questionar se a decisão de sumir da vida pública foi dele – recuperado de sua consciência ou capacidade cognitiva – ou da esposa e filhos como se projetasse os desejos do homem.
Porém, a parte final suplanta a primeira teoria. Ali assistimos um núcleo familiar muito rico, formado por uma das pessoas mais bem-sucedidas na carreira que escolheu desde criança – falar no passado. Com a melancolia da saudade. E mencionar a ausência como elemento vinculado a Schumacher. Tratam a fatalidade de seu acidente enquanto esquiava como uma grande injustiça. “Ele vive“, diz Corinna. “De certa forma, ele vive“.
“Schumacher” é um trabalho muito difícil de se equalizar. Uma obra que precisa dar conta de desenvolver uma extensa história de vitórias enquanto humaniza um ídolo – não tão forte aqui, em que os vínculos territoriais nos alimentou com outras personalidades – mas de grande potência ao redor do mundo. Tem que aplicar essas doses sem que ele seja mostrado. E mais: em respeito aos desejos dos familiares, dispostos a dividir suas biografias até certo ponto (sendo o filho agora piloto de F1 e iniciando uma vida pública que pode atravessar muitas dessas questões). Seguiu mais a linha do Esporte Espetacular do que do Arquivo Confidencial, assim como “Pelé” (2021), lançado há alguns meses. Deixou o ronco do motor falar mais alto – o parece ter sido de bom tom.
Veja o Trailer: