Sinopse: “Segredos de Guerra” se passa no auge da Guerra Fria, quando um soldado perturbado forma um triângulo amoroso proibido com um ousado piloto de caça e sua parceira em meio do ambiente perigoso de uma base da força aérea soviética.
Direção: Peeter Rebane
Título Original: Firebird (2021)
Gênero: Drama | Romance
Duração: 1h 47min
País: Reino Unido | Estônia
Página Virada
A tradição cinéfila dá certa importância ao primeiro e ao último filme que assistimos no ano – e poderei algum dia contar histórias curiosas envolvendo esse assunto. Para o produtor de conteúdo que precisa usar todo o tempo livre disponível, um ritual como esse parece mera formalidade. Sendo assim, inauguramos 2023 assistindo “Segredos de Guerra“, longa-metragem britânico que estreia nos cinemas brasileiros na primeira quinta-feira da temporada, dia 5 de janeiro.
Apesar do pacote ter ares de novidade, a experiência do filme dirigido por Peeter Rebane nos remete ao passado. Digo isso não apenas porque a trama nos coloca em meados da década de 1970, adaptando a narrativa real da autobiografia do ator falecido Sergey Fetisov. Ele serviu ao Exército soviético em uma base aérea na Estônia durante a Guerra Fria e relatou suas experiências. Na versão audiovisual, a forma como os dilemas se apresentam tornam a obra anacrônica de plano, fundando seu drama em uma jornada de vergonha, culpa e remorso.
Não que representações contemporâneas como a que presenciamos em “Segredos de Guerra” precisem se esquivar dessa abordagem. Afinal, não existe um código de “boa representação”. Existia, sim, uma diretriz censora no cinema norte-americano reproduzida em todo o Ocidente com o Código Hays. Esse, por sinal, parece mal ter saído de vigência no longa-metragem de Rebane. Nele somos apresentados ao jovem soldado Sergey (Tom Prior) que se apaixona por um tenente, Roman Matvejev (Oleg Zagorodnii), formando um triângulo amoroso com Luisa (Diana Pozharskaya).
A cena inicial traz ao espectador uma dose simples de poética. Os dois homens nadam em direção ao outro debaixo d’água e quando chegam à superfície, ganham a companhia da mulher. A obra nos coloca em uma realidade heteronormativa que esconde um desejo de liberdade que deverá permanecer submerso para aqueles dois homens. Esse artifício soa como uma “pista” ao público, uma vez que o ato inicial quer criar um mistério sobre a real paixão de Sergey. Os personagens que orbitam o triângulo enxergam o ciúme do protagonista, mas vinculam o mesmo ao suposto amor não correspondido por Luísa.
O caminho de tornar quase tudo sugestivo só não é mais errático do que a construção do drama. Seguindo a trajetória de Fetisov, ator que viveu aquelas experiências, a trama vai nos mostrando um Sergey em descoberta não apenas de sua sexualidade, mas também de seu talento na atuação. Interessado por teatro e balé, ele dedica seu tempo livre a conhecer melhor as artes. O roteiro, escrito pelo diretor ao lado de Prior, usa referências de Shakespeare e Doistoiévski para traçar diálogos trágicos para a vida de seu protagonista.
Em que pese ‘Segredos de Guerra” ser o primeiro filme do ano, não seria capaz de dizer em qual ano eu estaria se me apresentassem sem a devida ficha técnica. A pouca exploração da complexidade dos personagens e a ideia de que o destino é capaz de punir com a mesma crueldade que o sistema institucionalizado torna a obra anacrônica na origem. Todo o afeto contido em contraposição com a virilidade latente nunca vem acompanhado dos conflitos internos de Sergey. Parece que estamos diante de um homem insatisfeito com suas próprias descobertas, ao contrário do ator que fez questão de lançar uma biografia sobre um trauma do passado.
O filme não desafia as convenções heteronormativas impostas em conjunto. Elas existiram não apenas em uma base militar soviética dos anos 1970, mas existe ainda na sociedade e na indústria audiovisual que ainda persiste com seus preconceitos cinco décadas depois, dentro do contexto de realização do longa-metragem. Tantas obras já se chocaram com a masculinidade canhestra dos “homens de farda”, como foi “Querelle” (1982) de R.W. Fassbinder, adaptando romance de Jean Genet, por exemplo
Ao final da sessão nos refletimos que não se trata apenas de falta de ousadia ou conservadorismo por parte de “Segredos de Guerra” e sim de uma representação de um Cinema LGBT que já não se realiza mais, não se pauta pela forma proposta por um cineasta que parece querer emular tanto o século XX que fez um filme para a plateia que ficou no passado.
Enquanto melodrama, em nenhum momento somos convencidos de que a sociedade transforma Sergey e Roman em vítimas. Pelo contrário, ao final do segundo ato o soldado parece ainda mais solitário em sua paixão pelo tenente, sendo punido por uma representação que reproduz a culpa. Até mesmo quando busca refúgio na arte, na sequência em que ele assiste a um balé que clarifica (em parte) seus desejos, a montagem traz uma mistura de fantasia e pesadelo, como se ele tivesse em luta com seus próprios demônios.
A vilania na figura do oficial da KGB que investiga o comportamento do tenente é uma vírgula na obra, acabando por transformar o próprio Roman em uma pessoa desprezível em certos momentos. A homossexualidade se manteve criminalizada até o final da União Soviética no início dos anos 1990 – e os créditos finais nos lembra que desde 2013 está em vigor na Rússia uma lei que proíbe propaganda homossexual, vista por muitos como marco inicial de uma onda de repressão às manifestações sobre identidade de gênero no país. Algo que o documentário “Welcome to Chechnya” (2019) colocou no radar de grandes festivais – ao lado do debate ético do uso de deep fake para proteger os rostos reais dos depoentes.
O ato final de “Segredos de Guerra“, entretanto, traz um outro cenário, por conta do avanço temporal de quatro anos. Algo que dava certa esperança de que obteríamos respostas mais alinhadas à contemporaneidade preocupada com as representações. Porém, soa tão nefasto quanto a conclusão de “Lolita”. Rebane aposta em uma mistura de suspense pela “descoberta do segredo” da parte de Luisa e um reencontro de Sergey e Roman carregado de confidências tardias. Porém, insiste na ideia de que aquele afeto será carregado de culpa por todos os lados e que o destino sempre reserva uma tragédia. Nos deixa, então, uma sensação de folhetim ultrapassado.
Veja o Trailer: