Segredos de um Escândalo

Segredos de um Escândalo (May December, Todd Haynes, 2023) Crítica do Filme - Apostila de Cinema - Poster

Sinopse: Em “Segredos de um Escândalo”, 20 anos após um grande romance midiático, um casal enfrenta a pressão quando uma atriz viaja até seu lar para se preparar para um filme sobre o passado deles.
Direção: Todd Haynes
Título Original: May December (2023)
Gênero: Drama | Comédia
Duração
: 1h 57min
País: EUA
Segredos de um Escândalo (May December, Todd Haynes, 2023) Crítica do Filme - Apostila de Cinema - Imagem

Conformação

Com aquisição da Netflix após lançamento no Festival de Cannes de 2023 e chegando primeiro às salas de cinema no Brasil na última quinta-feira, a longa-metragem mais recente de Todd Haynes, “Segredos de um Escândalo” reúne as oscarizadas Natalie Portman e Julianne Moore em papéis que remetem a outros que lhe renderam celebradas interpretações (a primeira em 2011 com “Cisne Negro” e a segunda em 2016 com “Para Sempre Alice”). Em mais um drama psicológico em suas carreiras, contam com a direção sempre vistosa de um cineasta de poucos e quase sempre ótimos filmes.

Natalie Portman é Elizabeth, atriz que viaja para a cidade na qual um relacionamento que ganhou as páginas dos jornais anos antes será adaptado para os cinemas. Já Julianne Moore é Gracie, a mulher desse relacionamento que terá a chance de contar sua versão dentro do processo de laboratório promovido pela atriz. Elizabeth passará uma temporada na localidade a qual reside sua personagem da vida real e toda sua família, transformando seus moradores em peças importantes na construção de um papel complexo, o qual entende que necessita de explicações e motivações precisas para que possa desempenhar um bom trabalho.

Gracie ficou conhecida na cidade por ter se envolvido aos 36 anos com Joe (Charles Melton) quando o mesmo ainda era menor de idade. O garoto era colega de escola do filho daquela, o que gerou não apenas o fim do casamento, mas também problemas com a Justiça. Algumas informações chegam ao espectador a partir de fragmentos de jornais e revistas que Elizabeth analisa no início de sua trajetória laboratorial.

A preocupação de Todd Haynes em “Segredos de um Escândalo” é bem menos focada na exposição da história, se comparamos com uma narrativa que segue o caminho mais tradicional. Nas mãos de outros realizadores, o roteiro de Samy Burch talvez mantivesse a essência intrigante de usar o suspense (ou o estágio de suspensão) como ferramenta de “explicação” de um “segredo”. Todavia, dificilmente conseguiria resultado tão envolvente quanto o do cineasta californiano Seu longa-metragem mais recente dialoga em construção narrativa com outros de sua trajetória como “Longe do Paraíso” (2003) (pelo qual ele possui sua única indicação ao Oscar, na categoria de roteiro original) e “Carol” (2015), todos tão excepcionais quanto “Segredos de um Escândalo”.

Ambientando na contemporaneidade (mais precisamente em 2015), os elementos de direção de arte que tanto se destacaram nos dois filmes citados são menos esplendorosos aqui, mas ainda assim parte do destaque positivo da obra. Porém, a grande escolha é não suprir obrigatoriamente todas as lacunas constitutivas do passado de Gracie e Joe, exatamente o que a intromissão de Elizabeth objetivava no início do filme.

No prólogo, a família de Gracie nos propõe um exercício de construção da celebridade hollywoodiana que chegará enquanto ser estranho às suas vidas. Com uma função a princípio antropológica, Elizabeth vai se tornando um elemento inquisitório. Haynes sabe que o público notará certos filtros dados pelos agentes ativos da narrativa a ser reportada pela personagem de Portman, transformando a obra em uma experiência incômoda. É quase como se nós também nos perguntássemos o porquê de estarmos assistindo e se aprofundando na intimidade daquelas pessoas, ainda mais sobre um passado e em um local ao mesmo tempo tão desinteressante quanto sombrio.

Um dos grandes debates sobre a inviabilidade de se manter a dicotomia ficcional x documental reside no fato de que, no momento em que os holofotes se viram a nosso favor (ou um microfone permite que tenhamos voz), nosso testemunho sobre um fato não traz de volta o fato em si – e sim aquilo que desejamos que seja reconstituído enquanto fato.

Em “Segredos de um Escândalo” percebe-se uma escolha muito simbólica nesse sentido enquanto temática. Ainda nas primeiras sequências, nos desdobramentos já citados, há uma passagem em que a personagem de Moore parece querer fugir do diálogo e abre a geladeira aparentemente sob qualquer pretexto. Nesse momento, uma trilha cortante, incluindo um elemento de thriller à cena ordinariamente cotidiana, é a escolha propositalmente exagerada da obra. É como se pudéssemos fazer uma leitura de uma mulher que já parece interpretar um papel, antecipando o método de defesa que ela usará para tornar o objetivo de Elizabeth mais difícil de ser alcançado.

Haynes desenvolve a obra colocando o intrigante como elemento principal e boa parte desta intriga (e da inquietude de assistir) passa pelo fato de não sabermos sobre qual parte da verdade a personagem de Moore quer reduzir ou apagar dos holofotes. Aos poucos, a história explora Joe como um marido mais frágil e infantilizado do que se espera em sua idade e com suas obrigações enquanto pai de jovens adultos.

Até que o “peso do passado” se torna o tema-chave de “Segredos de um Escândalo”. Quando Elizabeth encontra o ex-advogado de Gracie em um restaurante, ele confidencia que boa parte daquela comunidade vive encomendando os bolos de abacaxi preparados por ela quase como uma forma de reinserção social. É um acolhimento artificial, o que antecipa uma questão de gênero que será trabalhada mais para frente. Não são poucas as histórias que usam esse momento da vida dos protagonistas como mote. Um ótimo drama norte-americano, “Pecados Íntimos” (2006) de Todd Field, por exemplo, tinha no seu leque de personagens Ronnie (Jackie Earle Haley) um homem que não conseguia reconstruir sua vida após cumprir pena por crime sexual, porém pela ótica da impossibilidade da reinserção social – pelo contrário, há uma perseguição e uma tentativa sistemática de controlar todos os passos do ex-detento.

Nesse acolhimento artificial dado à Gracie percebemos que o fato de ser uma esposa e mãe de dois adolescentes, se transforma em importante argumento. Até porque ela não parece demonstrar qualquer arrependimento ou sentimento de culpa. A maneira como ela encara os fatos que serão levados para o filme estrelado por Elizabeth são tão naturalizados que a personagem de Portman cai na maior armadilha que um ator ou atriz pode passar na construção da personagem: de tanta sinergia, ela acaba absorvendo comportamentos ou até mesmo querendo reviver passagens da vida pregressa de sua “modelo viva”, como podemos notar na cena em que ela visita o estoque da pet shop no qual o casal se envolveu a primeira vez ou até mesmo no terço final do filme quando ela vai além da simulação de vivências.

Outra figura importante que confirma a falta de arrependimento de Gracie é o filho mais velho dela, Aaron (Chris Tenzis). Ele surge na mesma cena do advogado, liderando a banda que canta no restaurante, introduzido como um homem de meia-idade que não parece ter dado muito “certo na vida” (a expressão é propositalmente entre aspas porque ela carrega todo uma problemática que o melhor juízo jamais me levaria a usá-la. O faço porque Haynes faz uma abordagem estereotipada do sujeito).

De forma, digamos, “elegante”, Haynes vai incrementando a inquietude de assistir à “Segredos de um Escândalo” com o desenvolvimento da obsessividade de Elizabeth e enchendo de referências hitchcockianas e bergamnianas para agradar aos cinéfilos mais emocionados. Enquanto isso, os SMS trocados por Joe com um sujeito oculto mantém certo mistério à espreita. Por mais que o longa-metragem talvez não agrade alguns espectadores enquanto “experiência”, a partir de suas ideias sobre construção de personagem por Gracie x construção de realidade pelo restante do elenco, chegando ao peso do passado, temos uma obra muito inspirada e inspiradora.

Sobretudo quando a parte final nos dá subsídios para chegar a uma verdade que apenas a própria Elizabeth alcançará. Há um gatilho em Joe de uma adolescência perdida na figura dos filhos gêmeos que se formarão no ensino médio e sairão do ninho iniciando a faculdade. É o momento em que ele entregará a única carta escrita por Gracie à época do início de seu relacionamento ainda guardada. Na sequência seguinte, há um diálogo fundamental, um debate entre Gracie e Joe sobre responsabilização. Aqui é que os aspectos de gênero ganham peso na autocrítica da personagem de Moore. No argumento dela, Joe sempre esteve no controle da situação, mesmo sendo um adolescente e vendo na futura esposa uma figura de autoridade, já que mãe do colega da escola. Já no processo de autoconhecimento dele, acelerado pela chegada de Elizabeth, fica o questionamento da veracidade dos sentimentos que ele diz ter pela mulher.

Há ainda espaço, no encontro fatídico com a verdade real, para instigar o espectador sobre a forma de fazer arte e como a reconstituição de fatos pode ser apenas uma proposta e não o real objetivo de uma criação. A cena mais emblemática é o monólogo de Natalie Portman (interpretando Moore) a partir da carta que contém a prova cabal que nos mostrará o grau de obsessividade de Gracie – contradizendo, inclusive, os argumentos do diálogo anterior citado no parágrafo acima.

Para quem busca por respostas fáceis ou “finais explicados”, podemos até fundamentar de que Elizabeth chegará ao final de seu laboratório de atriz com a certeza de que Joe foi abusado e permanece sob uma espécie de cárcere pois nunca colocou seus pensamentos, de fato, em ordem. Porém, essa é apenas uma das leituras possíveis, já que – como falamos mais acima – o real e o ficcional não são pistas de uma via expressa e sim duas linhas bem finas que se cruzam muitas vezes ao longo de um trajeto.

Já o epílogo, mostrando a gravação de uma cena do filme sobre a vida de Gracie e Joe, é uma aula de como a “arte pela arte” merece ser encarada. Fica para trás todo o ar soturno e depressivo (mais ao mesmo tempo intrigante) da cidade real que Elizabeth encontrou em sua pesquisa. Entra um cenário preocupado com uma estética mais atraente e partindo da ideia da romantização do relacionamento entre um adolescente que está amando ser seduzido pelo mãe de seu amigo. A atriz passa por infinitas repetições da mesma fala e cada vez que isso ocorre todos os elementos provocadores, misteriosos e inquietantes que presenciamos no filme ficam de fora.

Inspirado no caso verdadeiro de Mary Kay Schmitz, parte do processo de desnudação da verdade ao público (até porque a realidade só viria à tona na vida real com a morte da mulher em 2019, momento futuro ao tempo do filme), está o momento posterior ao diálogo-chave sobre responsabilização e o monólogo de Portman. Ao representar a formatura dos filhos do casal – e o distanciamento de Joe – percebe-se que estamos diante de um garoto que parece estar se formando, saindo de fato da adolescência junto com os gêmeos frutos do relacionamento abusivo. Joe sai de uma situação de conformação enquanto ser resignado, enquanto Elizabeth segue após seu processo final de conformação enquanto ser que tomou uma forma.

Em “Segredos de um Escândalo” Haynes faz uma obra pautada na inquietude, onde a criação da arte é mostrada como um processo. Ao final, parece nos mostrar que – apesar de tudo – as fontes dessa arte criada são elementos constitutivos mas não o todo. E que talvez a fidelidade seja um obstáculo a ser superado.

Veja o trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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