Sinopse: Documentário sobre aquele que é considerado hoje o pai dos inquéritos sobre a violação de direitos humanos, Roger Casement (1864-1916). As ações de quando ele esteve na África, no Brasil e na sua Irlanda nativa ainda repercutem em nossos dias.
Direção: Aurélio Michiles
Título Original: Segredos do Putumayo (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 23min
País: Brasil
Formas de Libertação
Do Congo em 1900 a Belém em 1910, “Segredos do Putumayo” segue parte de diários e lembranças de Roger Casement para atualizar as questões de violações de direitos humanos e como, em políticas imperialistas, a grama do vizinho ser verde e bem cortada parece ser mais importante do que a cura das próprias mazelas. A passagem pelo continente africano é fundamental para a construção do pensamento do irlandês e o diretor Aurélio Michiles, em complexo trabalho de pesquisa, traça em prólogo os resultados das investigações de Roger no local. Exploração do trabalho de crianças e jovens que deixou vítimas fatais e milhares de mutilados. Elogiado por suas denúncias de tais práticas, ele é enviado para a América do Sul para acompanhar o ciclo da borracha, em regiões totalmente dependentes dessa extração.
Boa parte do longa-metragem resgata o trabalho análogo à escravidão da população indígena no Norte e Nordeste do Brasil e países vizinhos da região amazônica. Primeiro como cônsul em vários pontos do país e depois oficialmente em expedição na bacia hidrográfica que corta a Amazônia até o Peru. Em um período em que a comunicabilidade não chegava perto dos índices de hoje, as atividades ilegais passavam ainda mais impunes. Trata-se de mais uma obra que torna incontroverso o genocídio dos povos originários. Por sinal, genocídios, no plural. Não apenas por atingir vários núcleos comunitários distintos culturalmente, mas por se espalhar na temporalidade. Exploramos e matamos desde a gênese do período colonial até hoje.
O foco de “Segredos do Putumayo” é o período em que latifundiários e outros espectros burgueses “se adaptavam” ao regimento que proibia a propriedade de seres humanos. Isto porque o capital sempre solicita um aumento de lucro, nem a manutenção parece servir. Com isso, a exploração ilegítima se tornou a solução para os barões que precisavam manter em alta o produto do qual são dependentes. Roger aplica seu olhar estrangeiro, mas identifica que a Inglaterra fazia parte dessa lógica escravagista. Registrou em fotografias crianças carregando fardos mais pesados que elas mesmas. Produziu muito material, a despeito da tentativa de censura e boicote ao seu trabalho. Já Michilis constrói seu documentário com uma aura virtuosista, trabalhando as imagens de arquivo e as objetos de captação atuais de modo a criar uma unidade estilística. Usando a fotografia em preto e branco, mesmo nos depoimentos e adicionando representações ficcionais, o longa-metragem é eficiente na imersão da leitura do biografado sobre aquela situação.
Há momentos em que a produção é muito mais contundente, principalmente na metade da projeção. O cineasta se aprofunda nas lembranças de mortes e maus tratos da Casa Arana e colhe fortes depoimentos de descendentes. Lembra como usaram as diferenças entre os povos para alimentar rivalidades e transformar alguns grupos indígenas em fiscais armados de outros, metodologia aplicada pelos imperialistas também na África. Chama a atenção estarmos diante de nações aparentemente livres e soberanas, mas que não possuem interesse em aplicar suas leis. Roger, inclusive, chama a atenção da beleza da legislação dos países latino-americanos, mas com uma grande falha no entendimento relacionado à igualdade. Sua passagem por esse território foi marcante e há dez anos o escritor peruano Mario Vargas Llosa usou seus escritos para compor a biografia “Os Sonhos do Celta”.
Seguimos assim até hoje e quando mencionamos na crítica de “King Kong en Assunción” sobre a terra manchada de sangue sob o verniz de uma região pacífica, documentários como “Segredos do Putumayo” são fundamentais para materializar tais assertivas. Os dez minutos finais da obra de Aurélio Michiles, contudo, vai além. Aplica uma visão crítica sobre seu próprio objeto, ou seja, o legado de Roger Casement. Nos faz evocar a necessidade, sempre urgente, de respeito à autodeterminação dos povos trazendo os anos seguintes à empreitada do humanista pela América do Sul. Se tornou mais do que ferrenho abolicionista, migrando de vez para a luta pela independência da Irlanda, o que lhe custaria a vida pouco antes da nação conquistar sua soberania. É que o imperialismo é assim: vende ideais aos outros, mas é incapaz de aplicar uma política de não-exploração no seu próprio quintal.
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