A Sessão 02 da Mostra Competitiva do 15º Festival Taguatinga de Cinema teve como foco a ocupação dos corpos nas cidades. Uma história se passa no Estado de São Paulo e as outras no do Rio. Assim, ao conjugar uma sessão com “Sem Asas”, de Renata Martins; “Minha história é outra”, de Mariana Campos e “Copacabana Madureira” ,de Eduardo Martinelli, o que pudemos ver foram corpos lutando por reconhecimento e espaço.
Os três curtas-metragem tratam da questão racial no Brasil, mas de maneiras bem distintas e por vias bem diversas. Temos uma ficção, um documentário e uma narrativa áudio/visual.
Era de se esperar potência. E, se há alguma palavra que possa definir a Sessão 02 da Mostra Competitiva como um todo, é essa.
Para Corpos como os Nossos
“Sem Asas” já começa com três passos à frente. Com elenco de peso, conta com Grace Passô, Melvin Santhana (que também canta maravilhosamente bem) e Kaik Pereira. Todos dão força à direção de Renata Martins.
Logo ao narrar um episódio de infância na vida de Zu percebemos como o menino, ainda que bem pequeno, percebe a necessidade de proteger seu corpo negro. Sonha em ser um colete a prova de balas e, depois se corrige: um super-herói. Um Zu, já na pré-adolescência, tem no herói negro Sankofa de um desenho animado (nome que remete ao povo Akan e significa que sempre podemos reconstruir o presente) como personagem favorito.
Não é difícil entender a identificação, já que ele também sempre quis voar, assim como os outros amigos. Uma possibilidade de fugir rapidamente dos perigos enfrentados em solo não muito receptivo aos seus corpos.
O quase inevitável acontece e, ao sair para comprar farinha para mãe, desvia seu caminho para pegar uma pipa. Zu recebe uma dura policial de imediato. Por sorte, os ferimentos físicos são leves, mas sabemos que os psicológicos jamais o são.
Ainda que tenham estudado, mencionem suas formação em curso superior, sem esquecer a luta diária com os trabalhos e o cuidado com a educação formal do filho, eles são alvos.
Depois de perceber, com alívio, que tudo está bem com o menino, ainda precisamos passar pelo constrangimento de abordagem junto a seu pai que, ao sair de casa correndo por não encontrar a família, também passa por revista.
Essas são cenas corriqueiras que acontecem em comunidades e regiões próximas a elas, mas também em quase todos os espaços das cidades. Quantos de nós já não fomos seguidos no mercado? Quantos efetivamente já não passamos por uma revista policial infundada?
O que os pais de Zu tentam o ensinar, além da física, é que ele precisa tomar cuidado porque “corpos como os nossos”, sempre são alvos.
O Amor Aparece na Forma de uma Mulher Preta
“Minha História é Outra“, de Mariana Campos, acompanha a vida de Niázia e de Leilane. Apesar de possuírem vidas um pouco diferentes, já que a primeira mora no Morro do Otto e a segunda é estudante de Direito na UFF (Universidade Federal Fluminense, de Niterói), outras tantas coisas as unem. Ambas não nasceram em famílias abastadas. Ambas são pretas. Ambas são lésbicas.
Niázia não parece estar em um relacionamento fixo, mas faz sempre questão de elogiar a amiga. Enquanto planejam estratégias para entrevistas de emprego (na qual Niázia aconselha: não vá muito sapatona!), também trocam afetos, carinhos e elogios.
Certa vez fui perguntada porque mulheres pretas se elogiam tanto. Apesar de achar a resposta meio óbvia, tentei sair do meu lugar e só consegui responder: porque não estamos acostumadas a receber elogios.
Na infância e na adolescência não nos chamam de bonitas, de inteligentes ou de potentes. Os elogios, quando aparecem, são quase sempre invasivos. Por isso, quando crescemos e tomamos consciência da sabotagem que nos é imposta fazemos questão de elogiar o trabalho bem feito de outra mulher preta. Suas unhas bonitas, seu cabelo trançado, seu black, sua voz. Fazemos questão de dizer: você é linda.
Os gatilhos, como uma das amigas de Leilane diz, aparecem na forma como muitas vezes optamos por um relacionamento com uma mulher branca em detrimento de uma mulher preta. E, como ela mesma conclui, se for sempre assim, muitas de nós permanecerá sozinha.
Para além disso, há algo mais delicado e profundo, o reconhecimento. Não é que queiramos nos olhar no espelho, estamos longe de ter síndrome de Narciso (aliás, nem combina com nossos corpos), mas é porque algumas questões só são entendidas por mulheres pretas. Isso pode parecer radicalismo de minha parte, porém, como essas meninas mais jovens e mais inteligentes do que eu propõem, deve ser um dos temas centrais do movimento LGBTQIA+. Como e de que forma mulheres pretas são incluídas nas discussões? Quais são as pautas? Elas existem ou somente em um âmbito bem próximo ao assistencialismo? “Toma aqui sua cota de sapatão lésbica nesse bonde”.
As representações e a cultura são cristalizadas, se não indagarmos, nos movermos e questionarmos tudo permanecerá igual. A proposta não é pelo distanciamento ,mas pelo diálogo.
Mas no fim, bem lá no fundo, dentro de todos nossos questionamentos e confusões, o amor vem mesmo na forma de uma mulher preta. E é incrível quando ele chega.
Rio, Cidade Estilhaçada
Entre memes e fake news, como chegamos até aqui? Ao opor dois bairros emblemáticos e seus espaços de lazer, “Copacabana Madureira“, de Leonardo Martinelli, propõe umas das possíveis respostas.
Quando nos afastamos do olhar de uma cidade mais ampla e trocamos uma religião castradora por outra, ao não pensarmos em nossos espaços e esvaziamentos (símbolos ou não).
O proposital deterioramento do ensino público (por conta do doutrinamento, deputados???) é uma das cegueiras escolhidas. Olhar para apenas uma das facetas da cidade, é outra.
Ao não olhar para os lados, os memes e as fake news ocupam nossas telas com notícias duvidosas (por vezes ridículas) e ocupam também esses lugares que deixamos vazios. Um pouco de tudo isso se mistura e nos traz a realidade que se apresenta hoje.
Precisamos nos reorganizar? Fato. “Copacabana Madureira” só torna mais evidente em uma narrativa que poderia somente soar irônica, mas, infelizmente, está bem próxima da realidade. Lamentavelmente, é quase nosso cotidiano que acompanhamos na tela de uma cidade já há tempos nem tão maravilhosa assim.
Ao terminar com uma chacina, que poderia ter realmente ocorrido, o cineasta encerra a Sessão 02 da Mostra Competitiva apontando para um início de um desastroso Governo.
Hoje me pergunto: se houvesse uma continuação do filme, sobraria algo?
O que será da cidade – e do Estado – após a catastrófica conjunção entre Prefeitura, Estado e Presidência (que tem os pés fincados no Rio de Janeiro, como sabemos)? Provavelmente Martinelli, que já realizou o curta “Vidas Cinzas“(2017), no qual mostra uma cidade sem cores, fará um filme sobre isso.
Esperamos que ainda exista cidade para analisar.
Ficha Técnica da Sessão da Sessão 02 da Mostra Competitiva
Sem Asas (Renata Martins, 19″ – 2019, São Paulo)
Sinopse: Zu é um garoto negro de doze anos. ele vai à mercearia comprar farinha de trigo para a sua mãe e, na volta pra casa, descobre que pode voar.
Minha História é Outra (Mariana Campos, 22″ – 2019, Rio de Janeiro)
Sinopse: O amor entre mulheres negras é mais que uma história de amor? Niázia, moradora do Morro da Otto, abre a sua casa para compartilhar as camadas mais importantes na busca por essa resposta. já a estudante de Direito Leilane nos apresenta os desafios e possibilidades de construir uma jornada de afeto com camila.
Copacabana Madureira (Leonardo Martinelli, 18″ – 2020, Rio de Janeiro)
Sinopse: Eleições presidenciais. Notícias falsas. Prazeres e dores pelos bairros da cidade. Brasil, século XXI.
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