Sinopse: Clint, um homem atormentado pelo passado, decide se isolar em uma casa nas montanhas. Nesse ambiente frio e hostil, ele vive sozinho e, em alguns raros momentos, interage com viajantes e nativos que não falam seu idioma e que visitam sua cafeteria. O isolamento, porém, não é o bastante para que Clint encontre paz. Certa noite, confrontando seus problemas, ele acaba embarcando em uma viagem interna por meio de sonhos, memórias e delírios. Em Sibéria, Abel Ferrara repete sua parceria com o ator Willem Dafoe. Juntos, eles voltam a explorar a intimidade e as aflições do homem, como fizeram em Tommaso (2019) e Pasolini (2014), mas de uma forma mais mítica e lúdica.
Direção: Abel Ferrara
Título Original: Siberia (2020)
Gênero: Drama Fantástico
Duração: 1h 32min
País: Itália | Alemanha | México
Torre de Abel
Selecionado para a mostra competitiva do Festival de Berlim desse ano, “Sibéria” de Abel Ferrara chega ao Brasil pela seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa-metragem é mais uma odisseia autobiográfica do cineasta, usando a figura do versátil Williem Dafoe como alter ego. Uma forma de um realizador se colocar à serviço da arte, sob o risco de acusação de auto indulgência. Um resultado que geralmente reforça o conceito pré-concebido daquele que assiste, algo que passa de nossa relação com o próprio artista até a ideia que temos de nós mesmos.
A maneira como Ferrara ousa afastar esse ranço ególatra da narrativa é impor uma construção de imagens estonteante, fruto de uma vasta experiência na área – somada a um linguagem que agrada os afeitos ao onirismo ou à violência visual. Nada em sua Torre de (B)Abel parece fora do lugar, mesmo que a inquietude do deslocamento a priori seja o grande trunfo do filme. Deixando no escuro o espectador, apenas os poliglotas fluentes em russo, vietnamita, hebraico e no improvável dialeto inuktitut (do interior do Canadá) compreenderão todas as verbalizações da obra, em parte sem legendas para manter a perspectiva do personagem principal. Mas isso não importa, visto que o diretor entende seu lugar no mundo – mesmo que paire dúvidas sobre o que ele acha que faz com isso.
“Sibéria” é, claro, um filme de discurso. Clint é um protagonista com total controle sobre as ações, mesmo a que ele entenda por inesperada ou esquisita. Parece sempre ter algo a dizer sobre qualquer situação. O cineasta expõe na cena inicial a relação de masculinidade daquele homem com seu pai, o qual costumava ir ao lago próximo de casa para pescar. Ali a filosofia da sociedade patriarcal era elevada à poderosa palavra da salvação. Entretanto, quando se vê em uma casa nas montanhas, isolado de boa parte do planeta, ele pode ser um cavaleiro errante sem sair do lugar.
Nessa lógica, Clint recebe visitantes os quais não compreende e, mesmo assim, não deixa de interagir. Faz a partir da linguagem universal do álcool, onde se observa as manifestações das mais diversas culturas a partir das escolhas. O russo pede vodca da mesma maneira que, se entrássemos lá, tomaríamos um caipirinha com gosto de saudade da nossa terra que tanto reclamamos. Quando entende não ser o suficiente essa experiência, ele se aprofunda naquele território – literalmente.
Acaba que Ferrara é só mais uma alma desesperada vagando por sentido. Todos nós somos e fazer parte de um leque de grupos hegemônicos torna essa odisseia ainda mais suplicante. Ele não encontra justificativa para a sua existência naquela casa, nos viajantes que passam, nem mesmo na grávida que faz ele tratar da maternidade como um milagre. Clint precisa transcender por ele mesmo, precisa se encontrar. Abel precisa criar seus diálogos visuais e metafóricos de forma ininteligível ao público. Portanto, se complementam. “Sibéria”, então, subverte de certa maneira o Mito da Caverna e faz Dafoe se ver em um espelho d’água após ter conhecido o mundo.
Essa autoterapia pode dar a impressão de que o diretor faz um longa-metragem de permanência em sua bolha. Cria suas convenções e as deturpa no que for conveniente. Pratica um genocídio idoso em uma gruta porque exorciza a própria velhice e usa os animais como símbolos visuais partindo de princípios por ele criado. Reencontra o próprio pai no meio da projeção e limpa os peixes em espelhamento narrativo para, sob a desculpa de ceder sua intimidade, praticar um exercício de registro de si. Mas o faz sob a estética do belo, mesmo na aplicação da crueza das mortes violentas.
Uma profusão de bonitas imagens, que brinca com a chegada da fotografia solar no meio de todo aquele gelo. É quando ele recebe a grande sentença: “seu propósito é um obstáculo“. Circulando pelos principais festivais do cinema e amado por muitos, ninguém deve pedir condescendência ao diretor. Se você quiser usar a bile para julgar “Sibéria“, pode fazer. Ele gastou o tempo e a criatividade dele para lhe permitir isso. Mas, você pode também ter pena. Por ver naquele homem um indivíduo que, mesmo saindo da Caverna, segue sem enxergar. O medo de ficar cego fez de Abel Ferrara um analista de si. There is no evil, diríamos a ele nos corredores da Berlinale.
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