Sinopse: Como quem procura por memórias sobreviventes nos destroços de uma guerra, a diretora Émilie Serri, nascida no Canadá, revisita imagens de arquivo, histórias de pessoas em exílio e as raízes de seu reservado pai, para reconstituir testemunhos de uma Síria aparentemente perdida. Nas reminiscências desse passado desconhecido, acessível apenas em seus fragmentos, em “Sonhos de Damasco” a cineasta cruza as margens entre o íntimo e o coletivo, entre os desejos de recriar e os de esquecer, para sonhar um país tão distante quanto vivo, tão próprio quanto compartilhado.
Direção: Émilie Serri
Título Original: Damascus Dream (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 23min
País: Canadá
Fronteiras das Memórias
Encerrando a mostra competitiva do 10º Olhar de Cinema, o canadense “Sonhos de Damasco” tem como fato gerador a carência afetiva da cineasta canadense Émilie Serri de sua ancestralidade síria. Após uma breve viagem 2010, na qual ela produziu imagens e fotografias do país de seu pai, um conflito interno levou a uma guerra civil e ficou marcada por uma Damasco de arquitetura destruída. A crise humanitária teve como consequência o grande fluxo migratório e é a partir do olhar de alguns cidadãos daquela nação que a diretora traça seu panorama.
Por mais que não se observe uma estrutura em três atos, há três possíveis percepções de linguagens – que não se misturam tanto ao longo da obra. Além disso, observa-se um espelhamento no qual Serri, enquanto narradora, evoca o que muitos acreditam ser o grande legado da globalização para, ao final, mostrar que o local de onde ela extraiu a ideia não possui um viés tão progressista e otimista assim. Tecnologicamente é possível ultrapassar as fronteiras invisíveis dos Estados sem grandes questões. O idioma também passou a ser um desafio cada vez menor com as atuais ferramentas. Porém, a Humanidade não parece disposta a ser (no que há de bom sentido) integralista.
Para além da Síria, uma onda nacionalista perigosa, protofascista, já é observada em alguns pontos estratégicos do Ocidente – como o Brasil e os Estados Unidos. Portanto, qualquer discurso que promove união total de indivíduos passou a ser alvo de perseguição, como se fosse uma ideologia globalista que ataca valores conservadores. Por mais que a defesa da destruição de qualquer barreira também abra espaço para colonizações culturais e um imperialismo etnocida, a resistência econômica a alguns expedientes é apenas um projeto retrógado.
Veja o Trailer:
“Sonhos de Damasco“, então, usa três tipos de imagens: vídeos e fotografias da Damasco de 2010; as representações recentes de testemunhos de refugiados; e outros arquivos históricos de familiares e frutos de pesquisa. Esse último grupo, apesar de não ser pensado de forma profissional, possui uma qualidade técnica que chama a atenção. Neta de projecionista de cinema, de uma rede de cinemas na Síria, parece existir um talento natural que atravessou gerações.
Porém, o grande destaque da obra são as falas dos sírios radicados no Canadá. Em conversa com Carla Italiano e Camila Macedo no canal oficial do Olhar de Cinema no YouTube – e que você assiste ao final da crítica – Serri falou das dinâmicas que envolveram as trocas em idiomas diferentes, mediados por uma tradutora. Talvez, por isso, as intervenções da cineasta sejam menores do que aquelas em que registra seu próprio passado. Boa parte desses imigrantes vinculam a memória da capital de seu país aos cheiros de flores – muito mais do que os sons que, nos momentos que antecederam suas partidas, eram de guerra.
Há um embate ético interessante no longa-metragem. Emilie muda a temática do filme para elencar lembranças que não são as suas, alterando o objeto. Porém, é confrontada por pessoas que não querem fazer esse exercício com o mesmo ímpeto que ela imaginava encontrar. Aliado ao saudosismo, traumas profundos vagueiam pela mente daqueles indivíduos. Após iniciar a trajetória da narrativa mencionando a destruição das fronteiras imaginárias, todo o processo que lhe segue promove argumentos para demostrar que o futuro talvez torne essa cenário necessário em virtude da sequência de tragédias que se avizinha.
Ao optar por não desenvolver uma unidade para o filme, “Sonhos de Damasco” possui momentos mais emblemáticos do que outros. Voltando aos três grande arcos (que não chegam a ser atos), o primeiro contrasta as lembranças da viagem bem-sucedida à terra de seu pai com a devastação de prédios bombardeados, em captações tanto por carros quanto por drones. Nos testemunhos, crianças e adolescentes dividem uma visão ao mesmo tempo inocente e atravessada, de uma memória já quase perdida ou forjada pelo que os adultos lhe contam. Só que elas parecem mais abertas às propostas da câmera, sem a intenção de criar subterfúgios. A diretora precisa conduzir pouco as cenas, deixa a fluidez natural, em contraste com o terço seguinte. Uma fase mais intimista, mas com imagens mais instigantes – tanto as de arquivo, quanto as contemporâneas.
Entretanto, a segunda parte é a melhor delas. Serri costura uma narrativa mais melancólica, de ritmo mais claudicante. Fixa as representações a uma grande quantidade de relatos, agora de adultos, que refletem antes de verbalizar, selecionando qual parte de suas memórias eles acessarem e desejam transmitir. Opta por trazer em sua maioria mulheres para essas falas, dialogando com “A Guerra não tem Rosto de Mulher”, livro de Svetlana Alexijevich adaptado parcial e ficcionalmente pelo excelente “Uma Mulher Alta” (2019). Histórias profundas e dramáticas, envolvendo prisão e sofrimentos físicos como a desnutrição, algo que vai se afastando um pouco mais da busca original do documentário.
Por fim, o último terço traz mais vozes masculinas e fica marcado por uma conclusão curiosa, preparada pela realizadora desde o início. A chave gira quando o assunto passa a ser a reconstrução de um país, a ideia de que a capital da Síria pode tornar a ser o que era pelas mesmas mãos que foram obrigadas a abandoná-la. Por mais que os personagens demonstrem resignação, não gostam de vislumbrar um retorno. Uma mulher jovem chega a mencionar que considera-se uma pessoa sem lar. O que ela projetava como território deixou de existir e o novo espaço em que ocupa não lhe acolheu. Uma questão envolvendo pertencimento que trouxemos um pouco no texto sobre “Um Céu tão Nublado“, exibido no mesmo festival – e que justifica a construção de pensamento de que países não devem mais existir. Pelo menos para aquelas pessoas, que tratam do seu no pretérito imperfeito.
“Sonhos de Damasco” termina com as falas mais incipientes e, ao mesmo tempo, mais encantadoras dessa investigação de Emile Serri. Um filme de busca, baseado em rememorações, que encontra relatos de quem optou por não trazer nada da Síria, nem mesmo as memórias. E possui uma das grandes frases ouvidas no Olhar de Cinema de 2021, que fixou boa parte de sua seleção no entendimento sobre o passado pela visão sensível e particular de cineastas do mundo todo. “Não quero lembrar, senão terei que viver com essa lembrança“. Remexer gavetas e arquivos, mesmo que não sejam os nossos, pode ser muito dolorido – e podem tornar as experiências propostas pelo Olhar ainda mais difíceis de suportar.
Assista à conversa entre Carla Italiano, Camila Macedo e Emilie Serri sobre “Sonhos de Damasco”: