Sinopse: Em “Sufocado”, após a morte de seu pai e a de muitos outros em sua cidade natal, o diretor belga Daniel Lambo embarca em uma emocionante busca para descobrir a verdade sobre a perigosa indústria do amianto. Sua pesquisa o leva ao maior aterro ao ar livre de amianto da Índia e revela uma indústria impiedosa, que continua a pôr em risco a vida dos trabalhadores e consumidores até os dias de hoje.
Direção: Daniel Lambo
Título Original: Breathless (2018)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 17min
País: Bélgica
Homicídio Corporativo
“Sufocado” é a obra mais intimista das quase dez que assistimos nos primeiros dias da 9ª Mostra Ecofalante. Dirigido pelo documentarista belga Daniel Lambo, pode ser visto como uma maneira de se trabalhar o luto pela perda do pai. Uma das milhares de vítimas da exposição ao amianto, a forma como o filho entende homenagear ou seguir sua luta é realizar um filme em que se escancare o que a indústria proporcionou no mundo, mais notadamente a empresa Eternit. Não há poesia em sua abordagem, seguindo a linha curatorial da mostra, que nos longas-metragens se pautam por serem documentários parecidos em temáticas (ambientais, econômicas ou seus desdobramentos) e linguagem (bem tradicional, próxima da jornalística).
Tanto que não há título melhor do que a definição do tema do filme: homicídio corporativo. Este é o termo que o Direito entende como o que empresas como a própria Eternit praticam (ou a indústria do tabaco, se pensarmos em relação ao consumidor), agindo ou se omitindo em relação aos riscos de sua atividade – e, por conta disso, levar um indivíduo à morte. É muito importante que o cineasta tenha criado um paralelo do que ocorreu em sua cidade-natal, na Bélgica, com uma área industrial da Índia, onde a multinacional adquiriu uma empresa para seguir explorando o amianto pouco antes de ser obrigada a paralisar suas atividades em parte da Europa.
Não podemos deixar de tratar dos males do sistema produtivo sem traçar pontes entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. A maneira como as empresas que geram graves danos à saúde dos seus trabalhadores e/ou clientes exploram recursos segue uma lógica. Criadas em países ricos, ignoram todos os avisos científicos baseados em estudos sérios sobre a periculosidade de suas atividades. O sistema processual dessas nações, além de mais eficientes, punem com muito mais rigor. Ou seja, grandes indenizações começam a tornar inviável a manutenção da empresa naquele local. Por vezes, a proibição se institucionaliza (como ocorreu com o amianto na Bélgica, em 1998). Como a demanda não se esgota automaticamente, o resultado é migrar para territórios mais pobres e acabar de destruir o país dos outros.
As doenças causadas pela exposição ao amianto podem demorar décadas para aparecerem. Mesmo assim, “Sufocado” denuncia que em 1963 avisos científicos sobre os danos já haviam sido disparados a empresas e governos. Não se tem ideia de quantas pessoas morreram por conta da mesotelioma, câncer de pulmão de difícil detecção e diretamente relacionado ao produto. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera todos os tipos de amianto cancerígenos. Mesmo assim, o Brasil segue autorizando o uso do tipo crisotila, o mesmo que matou o pai de Daniel Lambo e outras milhares de pessoas na região da Bélgica onde o documentário inicia sua história. O Ministério do Meio Ambiente (que desde que o novo governo assumiu não deve ter atualizado a página linkada neste parágrafo, senão teria excluída) menciona a “recomendação” de banimento do produto, que há décadas é discutida no Congresso Nacional sem que se avance no assunto.
“Sufocado” provoca algumas questões. A primeira é a forma pouco preocupada com a qual a Bélgica parece sempre tratar a saúde de sua população. O país, de pouco mais de 10 milhões de habitantes, ostentava a liderança mundial de mortes por milhão de habitantes por covid-19 quando este texto foi ao ar, com 858 (provavelmente será alcançada pelo Peru, que em 17 de agosto contava com 802). Seria um reflexo direto da exposição a um material que provoca doenças pulmonares? Fica outra questão: por que a Bélgica não está no centro dos holofotes quando se fala da pandemia, com uma densidade de mortes dessas?
A já mencionada forma como países menos desenvolvidos são ocupados pela indústria assassina explica o trato do amianto no Brasil e a maneira como “Sufocado” se desenvolve ao chegar na Índia. Curioso que justamente a produção com um fato gerador mais pessoal, intimista, transite por uma repetição de falas em determinado momento. A edição não consegue se desprender de um ciclo de informação já entregue nos primeiros dois terços – se valendo de um plot twist que volta a tornar tudo mais interessante. Parece que Lambo, preocupado em seguir os passos do pai ou buscar um legado para o debate em seu país, deixou passar o que se impõe em seu filme: a transformação de áreas do planeta em lixões tóxicos, recheado de resíduos sólidos mortíferos. Visita um exemplo de comunidade que confiou suas vidas (literalmente) em uma empresa que matará a todos, cruel e lentamente – mas não explora bem essa possibilidade.
Há uma busca por outros temas que faz a experiência de assistir a “Sufocado” dúbia: sentimos que transitamos por vários objetos, mas ficamos carentes de desenvolvimento de quase todos. Dentre eles, podemos citar as indenizações milionárias concedidas pela Justiça; o discurso negacionista das décadas de 1960 e 1970 (quando os danos provocados pelo amianto começavam a vir à tona); a ausência de tratamento eficiente e o sofrimento causado pela mesotelioma; as consequências da abordagem de Rob Moore (cineasta responsável pelo plot twist citado); dentre outros. Está tudo ali, mas com pouca profundidade.
A mais lamentável perda de oportunidade é com o discurso negacionista atual. Este é o que potencializa os danos – que, no caso do amianto, se estenderá por décadas. Ocupando os minutos finais, a discussão diplomática por um pacto mundial de banimento do produto vira um tribunal de defesa dele. Desde a velha desculpa de que isso promoveria crises econômicas e desemprego (a mesma usada por quem não quis isolamento social na pandemia ou defende empresas envolvidas em atividades ilícitas), até falsas simetrias, como uma comparação com a mencionada indústria do tabaco. É o famoso “basta viver para morrer”, demonstrando mais uma vez que a defesa pessoal se sobrepor à preocupação com o coletivo parece ser o caminho natural de quem quer sobreviver ao século XXI.
Mesmo com essa quase incipiência no desenvolvimento de alguns assuntos, Daniel Lambo entrega uma obra que dará orgulho ao seu pai, onde ele estiver. “Sufocado” traz dados alarmantes, como a provável morte de trezentas mil pessoas na próxima década pelo simples contato com o amianto. Fosse há um semestre, essa informação chocaria mais. Hoje convivemos com um vírus que, no ritmo atual, matará quatro vezes mais em um ano. Da mesma maneira que a mesotelioma, não sabemos as sequelas e os desdobramentos que os infectados por covid-19 terão em um, cinco, dez anos. Mas, de maneira impressionante, a capacidade de ser assertivo ou empático do ser humano parece inabalada. “Todo mundo vai pegar isso aí“, até disse um Presidente. Imunização do rebanho virou o plano A da crise.
Contudo, se há algo que o documentário belga faz muito bem é a escolha de palavras. Por força dela, definimos o título do texto e também o que irá em seu final. Não poderíamos terminar de maneira diferente do que mencionar a frase que encerra a obra, uma forma dura e sucinta de conclusão: “se não agirmos, o círculo cruel de ganância continuará por toda a eternidade“.