Usando a linguagem tradicional dos documentários, os três curtas-metragens da Sessão 02 da Mostra Paralela do 15º Festival de Taguatinga de Cinema (“Pega-se Facção”, “Filhas de Lavadeiras” e “Seremos Ouvidas”) perpassa pelas questões dos corpos femininos invisibilizados, sob um viés de dignidade. As duas primeiras obras apresentadas seguem o caminho laboral, enquanto o outro pelo respeito ao corpo. Em comum, a preocupação em cortar de vez a reprodução da ausência dessa dignidade em gerações futuras – sem deixar de reconhecer o quanto mudou em relação às passadas.
Dignidade no Interior
“Pega-se Facção” abre a Sessão 02 da Mostra Paralela e nos leva de volta ao Pólo Têxtil do Agreste Pernambucano, o mesmo que o cineasta Marcelo Gomes retrata no longa-metragem “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” (2019). Com histórias de trabalhadores explorados em pequenas fábricas ou em indústrias caseiras em seus quintais, o objetivo da cineasta Thais Braga é limitar as ações às dinâmicas laborais daquele território. Por óbvio que os patrões não têm voz, sendo o curta-metragem um amplo retrato sobre a rotina daqueles trabalhadores, que há muito tempo já sofrem com a precarização da contraprestação de serviços em um mundo que se orgulha de “incentivar a produtividade”.
Bolsos de calças costurados a dez centavos cada um e algo como quinhentas peças entregues por semana. São sete dias de trabalho para nenhum de descanso e a preocupação maior é que os mais jovens – aqueles que ainda não mergulharam de vez nessa dinâmica – consigam encontrar mais dignidade fora de Caruaru, Surubim e Toritama. É quase como projetar no outro uma vida eis que a sua se esvai sem que tivesse tempo de refletir sobre ela. A produção de documentários como esse cria essas provocações nos próprios entrevistados, que por alguns momentos absorvem e verbalizam tudo o que passam.
Dignidade na Cidade
Inspirado na obra homônima de 2002 da pedagoga e ativista Maria Helena Vargas da Silveira (falecida em 2009), “Filhas de Lavadeiras” fala de negritude e ancestralidade também pelo viés do trabalho. A diretora Edileuza Penha de Souza reúne um grupo de mulheres, como Ruth de Souza, Conceição Evaristo e Benedita da Silva, para falar do ofício exploratório, muito mais penoso em um época onde não havia aparelhos para lavar e passar. Flerta com o lúdico nos primeiros momentos, com uma construção poética a partir dos versos “El Reflejo” da cineasta Everlane Moraes para criar não somente o diálogo sul-americano mas para promover a construção de belas imagens. Quase como se romantizasse a atividade que será tratada dali em diante – como quando “pequenas lágrimas dos lençóis” nos traz uma coberta estendida no varal ao sol.
Só que “Filhas de Lavadeiras” consegue criar com muita naturalidade um diálogo entre três gerações. A de Ruth, Conceição e Benedita (além de outras mulheres ouvidas na primeira metade) se mostrou uma geração que muito buscou afirmação e que, muitas vezes, teve o reconhecimento de parte da sociedade infelizmente tardio. Elas contam as histórias de suas mães, seja no interior de Minas Gerais ou entre a Urca e o Leme e suas incontáveis horas de um trabalho que não admitia erros. Fizeram parte dessa luta por sobrevivência e por dignidade. Juraram para si jamais terem que passar por isso. Grandes atrizes, intelectuais, escritoras, assistentes sociais e parlamentares, elas não vilipendiaram aquelas que não tiveram a mesma voz – mesmo que ainda muito silenciada. Edileuza Penha de Souza constrói bem essa ponte em que – na geração seguinte – as lavadeiras se tornaram as empregadas domésticas.
Os anseios eram iguais: dar uma vida digna à família e fazer de tudo para que as filhas não precisassem seguir o caminho de um trabalho precarizado. Quase como uma contação de histórias, essas construções paralelas traçam muito bem um panorama – que tenta quebrar a ressignificação do que seria um espaço reservado àquelas mulheres. Por isso é tão fundamental a chegada de uma terceira geração, começando na fala de Hellen Batista, uma jovem que em seu depoimento obtém a imediata aproximação com o espectador. Iniciando falando do status de quem, na sua escola, conseguia ter livros em casa – até chegar a tão importante ocupação do espaço acadêmico. “Filhas de Lavadeiras“, aquelas que em 2002 tanto necessitaram das palavras de Maria Helena Vargas da Silveira hoje tem suas próprias filhas que, com a lição na ponta da língua, seguem a incessante busca pela dignidade.
Dignidade em Gestos
“Seremos Ouvidas“, de Larissa Nepomuceno, toca rapidamente na questão laboral. Quando uma das entrevistadas, professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná fala do descrédito que surdos tem quando decidem ocupar lugares no mercado de trabalho. Todavia, aqui a busca pela dignidade é ainda mais latente, porque vai como uma lupa no cerno de uma questão que, é quase impossível ao espectador não admitir, passa despercebida na sociedade.
Nepomuceno já havia apresentado uma obra sua, em parceria com Eduardo Sanches, na Mostra Convida. Em “Megg – A Margem que Migra para o Centro” conhecemos outro rosto dentro da mesma UFPR, de uma travesti negra que acabara de se tornar Doutora. Aqui a cineasta amplia o leque e cuida de três entrevistadas. Todas elas feministas e surdas, algumas com casos de violência sexual e outras que auxiliam vítimas. É impressionante como, em pouco mais de dez minutos, o curta-metragem nos faz refletir sobre a dimensão do problema. A falta de acessibilidade para quem não consegue ouvir é grave de modo geral – mesmo com esforços cada vez maiores para a inclusão desse grupo em eventos públicos ou transmissões de televisão. Mas ao tratar da violência doméstica, dos crimes sexuais, a proporção aumenta (e muito).
Sem contar a própria conceituação de feminismo para outras mulheres surdas que ainda carecem dessas informações. As trocas sob esses temas ainda é um processo a ser construído, uma vez que a invisibilidade era tanta que ainda há a demanda de auto reconhecimento. Portanto, uma obra como esta tem o peso de aproximar um debate, fomentar uma discussão que poderia ficar apenas no íntimo de muitas mulheres surdas vítimas de violência.
De forma bem direta as entrevistadas conseguem abarcar uma multiplicidade de questões oriundas dessa falta de acesso. Desde a dificuldade de comunicar de forma urgente com as autoridades policiais quando sofre alguma violência até o machismo de homens surdos, que muitas das vezes esperam encontrar condescendência pelos seus atos. O feminismo, assim como qualquer forma de pensamento e expressão, não é um bloco e sim feito de camadas. Só que essa, em especial, tem muita dificuldade de impor seus anseios, de construir sua dignidade. Larissa Nepomuceno, ao fim da Sessão 02 da Mostra Paralela, consegue materializar o conceito cada vez mais reverberado do “Nenhuma a Menos“, que surge em 2014 como nome de um coletivo que quer dar um basta ao feminicídio e a impunidade a quem os comete – e ganha esse desdobramento tão bem formatado em “Seremos Ouvidas“.
Ficha Técnica da Sessão 02 da Mostra Paralela
Pega-se Facção (Thais Braga, 13″ – 2020, Pernambuco)
Sinopse: Em uma região onde a seca dura a maior parte do ano e a agricultura familiar não garante o sustento, mãe e filha veem como única saída a costura domiciliar terceirizada na zona rural de Caruaru-PE. Mas qual é o preço a ser pago?
Filhas de Lavadeiras (Edileuza Penha de Souza, 22″ – 2019, Distrito Federal)
Sinopse: O documentário: “Filhas de Lavadeira” apresenta histórias de mulheres negras que graças ao trabalho árduo de suas mães puderam ir para escola e refazer os caminhos trilhados pelas suas antecessoras. Suas memórias, alegrias e tristezas, dores e poesias se fazem presente como possibilidades de um novo destino. Transformando o duro trabalho das lavadeiras em um espetáculo de vida e plenitude.
Seremos Ouvidas (Larissa Nepomuceno, 13″ – 2020, Paraná)
Sinopse: Como existir em uma estrutura sexista e ouvinte? Gabriela, Celma e Klicia, três mulheres surdas com realidades diferentes, compartilham suas lutas e trajetórias no movimento feminista surdo.
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