Taguatinga 2020 | Sessão 03 da Mostra Competitiva

Sessão 03 da Mostra Competitiva

Taguatinga 2020 | Sessão 03 da Mostra Competitiva

As Fendas e Os Rasgos

Por quanto tempo mais nossos corpos aguentarão uma pretensa liberdade que agora nem faz mais questão de se esconder? Como analisa no livro “A Crítica da Razão Negra“, Achille Mbembe ao traçar o nascimento de um Capitalismo ainda mais devastador, sugere um devir-negro do mundo no qual todos seríamos tratados como mercadorias, assim como ocorreu com os negros escravizados. Bom, assim já estamos funcionando. Nossa produtividade é posta em primeiro lugar com a diferença de que, agora, estamos todos escancaradamente a serviço do capital – e sabemos disso. Como sair dessa trama que nos faz sempre esquecer o passado para nos transformarmos em outro? Adaptável, conformável e conformado. Talvez a leitura de Mbembe e um pouco também esses curtas da Sessão 03 da Mostra Competitiva possam nos dar pistas.


A Arte Nunca Ignorada

Colapsar Sessão 03 da Mostra Competitiva

Quem trabalha com arte, principalmente a contemporânea (se bem que no campo das visuais isso pode ser estendido – e muito) está acostumado com as abordagens engraçadinhas e os debates enviesados sobre se determinada manifestação “é arte”. “Colapsar“, uma construção coletiva realizada no Laboratório de Videodança da Escola Técnica de Artes da Universidade Federal de Alagoas retoma essa questão que, mesmo exaustivamente presente na sociedade, ainda rende boas obras – como o curta-metragem que abre a Sessão 03 da Mostra Competitiva do Festival de Taguatinga.

Reginaldo Oliveira cria e performa em ruas movimentadas da cidade. Na introdução da obra, ele cobre o rosto, como que confirmando que a liberdade total do corpo muita vezes parte do princípio de anonimar-se. Uma grande cidade, aliás, tem esse poder anonimizante. Feita essa construção imagética, ele se posiciona na calçada e começa seu bailado. Junto dos sons dessa cidade (do carro de som ao vendedor ambulante), “Colapsar” capta o estranhamento. É sempre assim na primeira onda de consumo de arte – aquela que ainda resguarda um pouco de tolerância e sensatez. Os primeiros transeuntes que se sentem compelidos e parar e observar aquela dança dialogam com seu próprio estranhamento.

Alguns deles verão ali um protesto (contra feminicídio, essas coisas… diz uma) e outros arriscarão uma interação porque, concluem, está diante de uma manifestação artística. Nisso chega a segunda onda, aquela que – para se opor ao estranhamento saudável – se vê obrigada a desautorizar a performance de Reginaldo. Um grupo que tem ao seu lado o verniz conservador e que se entranha em qualquer espaço público onde a arte tenta se fazer ouvida. O curta-metragem consegue, em pouco mais de dez minutos, mostrar como transitamos do estranhamento saudável para a intolerância. Do questionamento acerca de ser “aquilo” “arte” para uma piada homofóbica é um pulo. Estamos cansados do mesmo debate enviesado, sim, mas “Colapsar” reitera como – analisando em perspectiva – os retrocessos são bem mais rápidos e avassaladores do que tudo o que a arte a muito custo construiu.

Jorge Cruz Jr. é Advogado e graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).  


Nossa Língua

O Verbo se Fez Carne Sessão 03 da Mostra Competitiva

“O Verbo se Fez Carne” revela os dois brutais silenciamentos religiosos que a colonização europeia e católica provocou em sua chegada aos territórios das Américas. Primeiro ao misturar povos de diversas regiões do Continente Africano (lembrando que as religiões afro estão intimamente ligadas ao território). Segundo ao catequizar indígenas para que eles pudessem adquirir “alma”. Assim nos ensinam nas escolas, mas de uma maneira mais suave. Bom, as coisas vêm mudando e, é bom que seja assim.

A implementação da Lei 10.639/03, que salvaguarda o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas permite com que alguns debates comecem desde cedo.

O curta-metragem experimental de Zeil de Santos Mendes tem na fotografia uma de suas aliadas. Ao contar de maneira sucinta essa relação imbricada e complexa, consegue nos mostrar de um lado as religiões afro, representadas pela língua e pelo alguidá. Do outro, a católica simbolizada pela Bíblia. A figura indígena aparece na forma física de um homem que larga o chocalho (que não é visto simplesmente como elemento musical, mas muitas vezes faz parte de rituais mágico-religiosos) na mesa.

Essa sugestão nos faz lembrar da dizimação dos povos indígenas nas Américas, ao continuar seu ato, no entanto, o índio revela que há mais.

Silenciados, seguem os índios e os negros: por um um idioma, uma cultura e uma religião que não são suas.

Roberta Mathias é Especializada em Cultura e Filosofia e Mestre em Filosofia. Desde 2014, é pesquisadora na área de Antropologia Urbana estudando sobre periferias latino-americanas e suas representações. Doutoraranda PPCIS/UERJ


O Rasgo do Tempo (E do Suor)

Tudo que é Apertado Rasga Sessão 03 da Mostra Competitiva

É preciso dizer que Fabio Rodrigues Filho fez um excelente trabalho de pesquisa em “Tudo que é Apertado Rasga”. Ao trabalhar com as imagens de atores negros famosos (em terras nacionais e no exterior), faz também uma edição que deixa evidente repetições de falas, gestos e pensamentos ao longo do tempo e das imagens. Essas repetições são inquietantes, pois provavelmente são derivadas de racismo que sofreram e não conseguem esquecer, mas também porque revelam que algumas coisas mudaram, mas nem tanto assim.

Ao dividir o filme em duas partes, Aperto e Rasgo, o diretor trabalha também com duas frases de abertura. Uma de Walter Benjamin, que sempre ao tratar da história lembra que esta é contada por vencedores. E outra, de Frantz Fanon, que lembra que os perdedores foram soterrados.

Nas imagens de Zezé Motta, Antonio Pitanga (que,aliás, estrela o único filme latino-americano selecionado para integrar o Festival de Cannes desse ano), Grande Otelo, Ruth de Souza, os filmes de Zózimo Bubul, dentre outros; Rodrigues revela uma passado – e presente, já que alguns ainda atuam brilhantemente – cheios de vigor.

A escolha pelo término com uma imagem de Lázaro Ramos, é uma aposta no futuro. Quem sabe conseguiremos rasgar de vez essa fenda e poderemos ser livres dentro de nossas diferenças?

De alguma forma, apesar de serem distintos em conteúdo, forma e gênero, os dois últimos filmes da Sessão 03 da Mostra Competitiva dialogam em relação a um silenciamento que ainda permanece. Possivelmente por isso as repetições, as cisões, os fragmentos e as costuras. É difícil reconstruir os fragmentos quando esses foram destroçados durante séculos.

Mas há a esperança de uma nova geração de atores e profissionais das mais diversas áreas. É isso que nos sustenta.

Roberta Mathias é Especializada em Cultura e Filosofia e Mestre em Filosofia. Desde 2014, é pesquisadora na área de Antropologia Urbana estudando sobre periferias latino-americanas e suas representações. Doutoraranda PPCIS/UERJ


Ficha Técnica da Sessão 03 da Mostra Competitiva

Colapsar (Direção Coletiva, 12″ – 2019, Alagoas)
Sinopse: Colapsar a norma, problematizar corpos invisíveis.
O Verbo se Fez Carne (Ziel dos Santos Mendes, 7″ – 2019, Pernambuco)
Sinopse: A invasão dos europeus em Abya Yala nos deixou cicatrizes. Ziel Karapotó utiliza seu corpo para denunciar cinco séculos de colonização.
Tudo que é Apertado Rasga (Fabio Rodrigues Filho, 27″ – 2019, Bahia)
Sinopse: Na tentativa de forjar uma ferramenta capaz de operar o corte por justiça, este filme retoma e intervém em imagens de arquivo na busca de reestudar parte da cinematografia nacional à luz da presença e agência do ator e da atriz negra.


Podcast

Taguatinga 2020 | Sessão 03 da Mostra Competitiva

A Apostila de Cinema é uma iniciativa de promover o debate sobre o cinema e questões pertinentes ao mesmo levantando análises culturais, sociais e estéticas que consideramos centrais para o pensamento crítico da Sétima Arte Contemporânea.

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