Depois de uma segunda sessão com documentários que usam a linguagem mais tradicional, em uma aposta acertada nas temáticas, a Sessão 03 da Mostra Paralela do Festival Taguatinga de Cinema 2020 segue outro caminho, o da semi-ficcionalidade. Três obras que tratam de resgates e encontros de si através das vivências familiares. A caminho do Crato, na despedida do pai que se vai, uma reflexão sobre o que poderia ter sido a vida de uma mulher trans em sua cidade-natal. Chegando a São Paulo para procurar o irmão, os diálogos com a própria consciência sobre as dificuldades de ser um imigrante haitiano fluente apenas em francês na megalópole brasileira. E de dentro de um melão, a forma de reconstituir a vida em família de uma jovem na parte final de seus estudos em Cinema, se torna um resgate da própria essência.
Onde a Vida é mais Vida
“A Vida Dentro de um Melão“, que abriu a Sessão 03 da Mostra Paralela, foi reassistido uma semana depois da maratona do final de semana passado que nos colocou com quase quarenta obras do 2º Festival de Cinema do Meio do Mundo em apenas 48 horas. Naquela mostra, o curta-metragem de Helena Frade – integrante da Mostra Nacional – saiu vencedor em três categorias técnicas: direção de arte, trilha sonora e som. Foi bom ter mais tempo para pensar sobre esta produção, apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso da formação acadêmica da cineasta na Universidade Federal de Juiz de Fora (ela, também na UFJF, dirigiu o curta-metragem documental Firma o Guia Povo do Santo).
No breve texto da época destacamos a busca pelo que tocava Helena Frade como pertencimento. Sua maneira de compor a obra é, de fato, notável. Parte do que há de mais íntimo – representado no mundo dentro do melão – para expandir a mera visão autobiográfica e trazer fragmentos de fácil conexão e correlação pelo espectador. A maneira com a qual incia a jornada introspectiva é caracterizar os pais, os avós e as irmãs separadamente, partindo de bordões ou frases que os tornam únicos na dinâmica familiar. Um exercício que, desenvolvido de forma cadenciada no começo do curta-metragem, tem o condão de gerar essa reflexão do próprio espectador. Qual a frase que sua mãe sempre costuma/costumava falar? E seu avô?
A transição narrativa dentro da fase animada da obra altera os enquadramentos gerais com as sequências simulando a Helena dentro do melão com câmera em punho, fazendo um vídeo caseiro. Apenas perto da metade a diretora vai inserindo fotografias reais, nos aproximando da reconstituição mais fiel da própria história. É como se simular a ficcionalidade não fizesse mais sentido. Ela, de maneira bem curiosa, troca a cadência das cenas dentro do melão por imagens reais em velocidade acelerada quando a convém. Parece que quer nos trazer, dentro dos menos de dez minutos em que este tipo de imagem toma a frente, o máximo de lembranças possíveis – independente se haverá sincronia com o que as pessoas dizem.
Uma animação, um álbum de memórias, um exercício de montagem. “A Vida Dentro de um Melão” é tudo isso e ainda conta com uma divertida canção que fica grudada na nossa mente. Helena Frade descobre o poder do cineasta de eternizar e entende que estamos aqui de forma transitória ao encerrar seu belo curta-metragem com o uso de espaços inabitados e detalhes de objetos da casa com as marcas do tempo. A vida real talvez seja menos atraente visualmente, mas é bem mais carregada de história.
Jorge Cruz Jr. é Advogado e graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Afeto que Retorna
“Marie“, de Leo Tabosa (nesse link, Tabosa fala um pouco sobre a construção da personagem e na montagem),tem como personagem-título uma mulher trans (Wallie Ruy) que retorna ao interior para enterrar o pai. Sua relação conflituosa com o mesmo logo vem à tona a partir da figura dos antigos vizinhos. No entanto, a relação que acaba sendo o eixo central do filme é a de Marie e seu melhor amigo de infância, Estevão. Este, sugere ajudá-la levando-a até Crato, cidade na qual o pai pediu para ser enterrado ao lado da mãe de Marie. Talvez, esta tenha sido a maneira que Estevão (Rômulo Braga) encontrou para se reaproximar da antiga amiga.
Ainda que os conflitos apareçam, principalmente em decorrência da orientação sexual de Marie e de sua identificação de gênero e um possível crush ainda vigente em um Estevão que se retrai, o filme acerta ao focar na amizade. O cineasta consegue criar uma sintonia fina entre as personagens fazendo com que, qualquer que seja a maneira escolhida – como amigos ou amantes – fiquemos felizes com o amadurecimento de ambos.
O curta-metragem acaba de ganhar o prêmio Cinemateca Pernambucana do Festival Fundej 2020 mostrando que a relação complexa, porém duradoura que Tabosa retrata, funciona nas telas. (Assistido durante o FestCurtas Fundaj 2020).
Roberta Mathias é Especializada em Cultura e Filosofia e Mestre em Filosofia. Desde 2014, é pesquisadora na área de Antropologia Urbana estudando sobre periferias latino-americanas e suas representações. Doutoraranda PPCIS/UERJ
Do que Nunca Saberemos
“Por Trás da Pele” de Cristian Cancino, tem uma frase muito emblemática logo em seu início. O protagonista, imigrante haitiano que chega a São Paulo em busca do irmão, diz que “precisamos nos reinventar a todo momento antes que os outros construam nossa própria imagem“. Mais do que a relação de quem chega ao Brasil em busca de uma nova vida, muitos esquecem que o Haiti recebeu uma missão de paz da ONU liderada pelo nosso país. Pouco se trouxe para nossa sociedade o que ali aconteceu e o resultado, claro, foi uma total ausência de lições aprendidas.
Joris não é entendido, ou melhor, sequer é percebido pelos moradores locais. Ele conta com a ajuda de um boliviano, que pouco lhe compreende – mas se esforça o máximo que pode. A barreira da língua é bem explorada na obra de Cancino, mas a corporalidade negra é outro objeto potente no curta-metragem. Ninguém sai de seu país porque quer e muitos esquecem que só conseguem, de fato, migrar, quem possui condições financeiras mínimas que permitam deixar para trás sua terra-natal.
O protagonista é professor, extremamente articulado e com conceitos e conclusões muito sedimentadas dentro de si. Ele reproduz seu conhecimento em pensamentos, em uma montagem que gira pela narrativa em off. Tem destaque uma fala sobre o esmagamento causado pela valorização da propriedade privada. Deixar Joris a margem da sociedade, sob várias desculpas (a barreira linguística, a xenofobia e o racismo, principalmente) nos impede de dar mais e – vamos além – receber o que aquele homem tem a nos acrescentar.
“Por Trás da Pele” ainda toca em outras questões, ou nas mesmas porém de maneiras diversas. Insere no debate o colorismo (tão bem articulado em “Ruído Branco“, outra produção que participa da Mostra Paralela) mostrando uma senhora que produz seu urgente conteúdo para as redes digitais da sala de casa. Explora as ruas de São Paulo – onde Joris também será explorado. Chega ao fim com uma idealização profundamente utópica, para quem minimamente conhece a postura da Polícia Militar como instituição. Um filme no qual o protagonista não esconde e desde o início lamenta ser visto apenas como um corpo. O negro. O haitiano. O espectador, ao final da Sessão 03 da Mostra Paralela, com todas as suas vivências, é quem lhe deverá fazer justiça.
Jorge Cruz Jr. é Advogado e graduando em Produção Cultural pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).
Ficha Técnica da Sessão 03 da Mostra Paralela
Marie (Leo Tabosa, 25″ – 2019, Pernambuco)
Sinopse: Mário retorna ao sertão, depois de 15 anos, para enterrar o pai. Ele regressa para sua cidade natal, como Marie, uma mulher trans. lá reencontra seu melhor amigo de infância, estevão e com ele o seu passado. com a ajuda de estevão, Marie parte numa viagem para enterrar o pai na cidade do Crato.
Por Trás da Pele (Cristian Cancino, 25″ – 2018, São Paulo)
Sinopse: Joris, um imigrante haitiano, chega a São Paulo para procurar seu irmão. na rodoviária, tem suas coisas roubadas e acaba se envolvendo num mal entendido com a polícia. Um imigrante boliviano vai ajudá-lo nessa jornada pela cidade.
Vida Dentro de um Melão (Helena Frade, 18″ – 2020, Minas Gerais)
Sinopse: Uma garota filma o seu redor. fantasiada de bicho, o desconhecido te assopra quando o coração quer voar.
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