Taguatinga 2020 | Sessão 04 da Mostra Competitiva

Sessão 04 da Mostra Competitiva

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Na Sessão 04 da Mostra Competitiva do Festival Taguatinga de Cinema 2020 três filmes estabelecem uma relação direta entre as forças da natureza e a força feminina. Por isso, começo trazendo a figura da Pachamama, a Mãe Terra cultuada nas culturas latino-americanas como geradora do mundo.

Essa figura geradora aparece de forma simbólica ou efetiva nos três curtas que compõem a sessão: “Cartas para Ana”, “Uma força Extraordinária” e “Trindade”. Não é o acaso também que nos faz lembrar das Yabás, Orixás femininas cultuadas nas religiões afro (seja na Umbanda, seja no Candomblé), que assim como os Orixás masculinos, se apresentam sob a forma de um poder da natureza.

Essa conexão da força feminina com a natureza pode ser, como já muito o fui, entendida como um divisor entre natureza (feminino) e cultura (masculino). No entanto, os curtas-metragens apresentados exploram a potência do ser  feminino em sua integralidade, dúvidas, questionamentos e mistérios.

Assim, convidamos a todos que vejam e sintam essa sessão pensando nesses questionamentos apresentados e nas dificuldades ainda enfrentadas pelas mulheres que persistem e lutam para manter sua independência e personalidade na sociedade machista.

Mesmo entendendo esses obstáculos, o que a Sessão 04 da Mostra Competitiva traz é um acalento que vem em forma de céu, água, terra e mato, sem os quais  não poderíamos viver. Se na Sessão 04 da Mostra Paralela a questão central pode ser entendida como “a que ponto chegamos?”, na Competitiva ela pode ser entendida como “quais são as possibilidades de se ser mulher?”


O Mar

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Em “Cartas para Ana”, são muitas perguntas que a personagem principal, Lu (voz da roteirista, montadora e produtora, Carla Caroline) nos impõe. Sem sabermos quem é Ana, ela também se questiona sobre os rumos que tomou ao decidir estudar cinema e ir morar sozinha e parece perdida em relação ao seu próprio amadurecimento enquanto mulher. Dessa forma, começamos a Sessão 04 da Mostra Competitiva.

A água, sempre presente nos evoca a figura de Yemanjá, a mãe e a dona dos mares. Em um mergulho profundo, Ana procura encontrar o que ficou perdido em uma nostalgia que nos mesmos nem sabemos do que se trata. De uma maneira ou de outra, a protagonista parece presa ao passado.

Assim como parece não saber qual enquadramento escolher para si mesma, Lu parece também se perguntar quem quer ser. A saída que a personagem e a diretora dão para essa questão passa por uma das palavras da ordem: sororidade. Evito usar palavras recorrentes, pois entendo que elas percam um pouco de força quando se transformam apenas em palavras.

No entanto, no filme Lu diz o que é a base dessa força plural feminina: cuidar e amar as outras. Talvez o que procure esteja nessa liberdade feminina que se dá a partir do conjunto.

A Ana que procura, pode vir, então, na forma de qualquer mulher que a ajude a passar por essa indefinições e com quem possa também construir caminhos paralelos com intuito de crescimento de todas.

A sororidade em “Cartas para Ana” não aparece como palavra frívola, mas como proposta de construção.


A Terra

Sessão 04 da Mostra Competitiva

Ao acompanharmos o preparo de parto de Jéssica, passamos por diversas fases dessa transformação com ela. Talvez dentro os três seja o filme que evoque mais diretamente a força da Pachamama e que convoque elementos distintos da natureza. Escolho a terra, tanto pela própria analogia que Jéssica faz com as formigas, mas também por ser a primeira cena que o filme nos apresenta.

Sem saber muito  o que esperar de sua primeira experiência com o parto e como mãe, Jéssica se apoia em seu marido, mas também na mãe e nas amigas, que após o parto se alternam para ajudá-la nos primeiros meses.

A analogia com o formigueiro, então, não é descabida. Cada uma faz sua parte, para que o todo possa funcionar. Muito consciente de sua importância enquanto mãe, Jéssica que ainda passará por muitas dificuldades e que novos processos corporais e psicológicos precisarão ser apreendidos.

As experimentações com seu corpo, suas escolhas, suas potências e suas necessidades precisarão agora ser partilhadas com um novo ser que ela gerou. Em um processo de recolhimento inicial, entende que precisa se conhecer para que possa estabelecer limites e a abrir mão de alguns posicionamentos pessoais para que esse novo integrante de seu núcleo familiar possa desenvolver personalidade própria.

Aqui, a figura de Nanã, a Orixá da Terra e da lama, a antiguidade, da qual todos viemos, se faz mais pulsante. E nessa experimentação com a terra e com outras mulheres que Jéssica acredita ser possível construir o sentido da maternidade.

Entendemos que não é sem motivo que uma das imagens de divulgação do curta seja a própria Pachamama, grávida do mundo. Esse mundo que se reconfigura a partir de cada ser. “Uma força extraordinária”.


O Vento

Sessão 04 da Mostra Competitiva

Último filme da Sessão 04 da Mostra Competitiva, o documentário “Trindade” traz a figura de Maria Trindade da Costa. Senhora sofrida que atualmente mora em Conselheiro Lafaiete, o curta-metragem narra sua história desde a infância. Dos abusos sexuais do pai, sua fuga e seu embate contra o alcoolismo. Não foi fácil para Trindade deixar de beber, por isso celebra seus 43 anos de abstinência, que diz ser diferente de sobriedade. Para tal ainda não se considera pronta.

A senhora calejada pelo tempo parece ser dura demais com seus próprios erros e próprias escolhas. Em momento algum vemos um julgamento do diretor Rodrigo Meireles, mas esse parte da própria Maria. Talvez, por já ter sido muito julgada.

Maria Trindade é uma representante de muitas mulheres que não conseguem ver alternativas para a vida além de trabalhar e se deixar levar pelo vento. No entanto, forte e altiva, toda a história é contada de cabeça erguida. E um trovão no meio de seu quintal me faz lembrar Iansã, a Orixá guerreira, dona dos ventos e trovões.

Por mais que tenha passado por momentos difíceis, como perder sete de seus nove filhos, Maria está ali pronta para contar sua história, talvez dividir. Um pouco para deixar fluir o passado, mais um tanto para compartilhar sua sabedoria.

Entre pontos de umbanda, folhas e afazeres domésticos de casa, nos passa uma grande lição: “todos nós somo desse planeta , um depende do outro.


Ficha Técnica da Sessão 04 da Mostra Competitiva

Cartas Para Ana (Carla Caroline, 17″ – 2020, Bahia)
Sinopse: Ju, jovem estudante de cinema, procura em si caminhos e respostas sobre seu próprio ser e estar no mundo.
Uma Força Extraordinária (Amandine Goisbault, 24″ – 2019, Pernambuco)
Sinopse: Jéssica se deixa acompanhar em um dos momentos mais íntimos da vida de uma mulher que deseja ter filhos. A espera e o parto.
Trindade (Rodrigo R. Meireles, 28″ – 2020, Minas Gerais)
Sinopse: A senhora Maria Trindade da Costa conta sua história com coragem e força.

Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.

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