Sinopse: Em “The Girl on the Train”, uma mulher divorciada fica obcecada por um casal aparentemente perfeito. Quando testemunha algo chocante, acaba se envolvendo em um complexo caso de assassinato.
Direção: Ribhu Dasgupta
Título Original: द गर्ल ऑन द ट्रेन (2021)
Gênero: Crime | Mistério | Drama
Duração: 2h
País: Índia
Desvios de Rota
“The Girl on the Train“, que manteve seu título original no Brasil talvez para não se confundir com a versão de 2016 (“A Garota no Trem”, estrelada por Emily Blunt), é mais uma produção que chega pela Netflix a todo o planeta com uma missão de internacionalização. Assim como tratamos em “Desafios do Amor” sobre a maneira como o cinema nigeriano (com um intercâmbio cultural com a Índia nesse caso em específico) se coloca naquela narrativa, aqui o best-seller de Paula Hawkins é readequado para os preceitos de Bollywood, a indústria audiovisual do segundo país mais populoso da Terra.
Com isso, somos levados pelo thriller que acompanha uma jovem que se envolve em um caso de assassinato por conta do trauma de um relacionamento que lhe trouxe muito dor. Do uso tradicional de flashbacks e elementos de suspense às canções que dialogam com os grandes musicais indianos, não apenas o resultado final reforça que a abordagem globalizada pode gerar perda de identidade como faz com que as ferramentas, a linguagem e a estética típicas do fazer artístico clássico bollywoodiano soem deslocadas.
Há em “The Girl on the Train” a mesma formatação folhetinesca e exagerada, mesmo que de forma menos profunda, com a qual tratamos na crítica já mencionada. Aqui ela surge de forma discreta, começando por uma canção que serve de arco introdutório. A protagonista é apresentada na festa de sua família e a letra da canção fala da chegada de um belo estrangeiro que poderá botar tudo a perder. A mise-en-scène desta e das cenas seguintes se assemelham ao núcleos ricos de novelas das 9, daquelas geralmente escritas por Manoel Carlos e que se passam na zona sul carioca.
Em 2017, a protagonista é uma promissora advogada com a vida toda pela frente e nada parece capaz de impedir seus planos, ainda mais inserida em um contexto social bem menos conservadora do que outras regiões do seu país. Todavia, dois anos depois ela parece caída em desgraça. Seu relacionamento acabou por uma mistura de traição dele e incapacidade de lidar com o alcoolismo dela – e ela começa a projetar o que seria a realidade perfeita em uma casa que vê da janela do trem que pega diariamente.
Nas poucas representações mais exageradas, podemos vera atriz Parineeti Chopra andando com uma garrafa de vodca e tropeçando nas próprias pernas à luz do dia, no centro financeiro de sua cidade, sem que ninguém se importe muito com isso. Dali uma nova sequência musical ganha forma, mas o diretor Ribhu Dasgupta fará todas elas soarem diegéticas à trama, o que já significa uma concessão à internacionalização da narrativa. Mira aparece entorpecida em uma boate ou vagando pela rua buscando um sentido e a solução de seus problemas, acompanhada de montagens e músicas nem sempre relacionadas aos fatos.
Sai a linearidade típica, entra a edição dinâmica. A morte a ser investigada aparece como um vácuo, ganhando corpo até na metade da história, quando informações mais adiante são reveladas pelo espectador. O material original de Hawkins permite que vários tipos de mistérios sejam desdobrados e até que o filme parece jogar bem com isso. Porém, saltam aos olhos do público as abordagens bollywoodianas, que não casam bem com o longa-metragem sobre o complexo gaslighting promovido por Rajiv (Diljohn Singh).
Isso faz com que a obra seja quase uma piada em alguns momentos. Do excesso de maquiagem com lápis preto que tenta simular grandes olheiras de Mira até o machucado em sua testa que parece ter deixar o cérebro exposto. Aspectos de produção que não cuidam bem da tonalidade irrealista ou excessivamente) ficcional, já que o que envolve a trajetória da protagonista é revestida de realidade. Incoerente ou despersonalizado, a única dúvida é essa. Acaba que as atuações, ao invés de serem percebidas pelo olhar do cinema indiano, deixam a sensação de serem apenas ruins.
O mesmo acontece com a ausência de verossimilhança, que não é um problema automático nas representações artísticas, mas aqui provocam risos na hora errada. O que dizer da Inspetora vivida por Kirti Kulhari que começa a inquirir uma suspeita no meio da rua, mostrando todas as provas que possui, inclusive colhidas na cena do crime? E uma advogada que não se preocupa em prestar atenção nas próprias provas que podem incriminá-la ou inocentá-la?
Claro que, para suprir esse abandono da lógica, a parte final do filme precisa apelar muito para diálogos expositivos e personagens destrinchando os acontecimentos do passado com longos flashbacks igual um capítulo final de novela, que precisa conectar os pontos e encerrar seus arcos da maneira mais didática possível. Esse prolongamento do clímax é mais uma das maneiras como “The Girl on The Train” usa o absurdo contra si mesmo.
Por trás de uma ótima história que começa com a vulnerabilidade de Mira, vai para o momento em que Rajiv se aproveita da fragilidade até concluir que ele, na verdade, criou o problema, está uma obra perdida em suas pretensões. Um caso de inadequação entre forma e conteúdo, entre história e linguagens que não conseguem se completar porque uma não consegue oferecer o que a outra precisa.
Veja o Trailer: