Sinopse: Montado em seu cavalo Cruzeiro, e na companhia de um andarilho chamado Tahiel, João adentra uma grande cidade do nordeste brasileiro para enfrentar àquele que tomou suas terras e acabou com sua família.
Direção: Victor Furtado
Título Original: Última Cidade (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 10min
País: Brasil
Manual da Latinidade
Nos créditos de “Última Cidade“, para aqueles que ainda tinham dúvida, o cineasta Victor Furtado (estrando em longas, depois de uma carreira de grandes trabalhos em curta-metragem, inclusive o prêmio da 16ª Mostra Tiradentes por “Meu Amigo Mineiro”, de 2013) deixa registrada a influência direta de “Dom Quixote”, lançado pelo espanhol Miguel de Cervantes no final do século XVIII. O longa-metragem, produzido pela Marrevolto Filmes (de outras produções também muito originais e que já tratamos aqui, como “Inferninho” e “Pajeú“) e exibido dentro da mostra competitiva ibero-americana do 30º Cine Ceará, faz uma composição que tem em uma ponta a curiosa história de um ser anacrônico.
Aqui também o imagético nos remonta a esta característica, por vezes. Na mais flagrante delas, o protagonista João (Julio Adrião) atravessa uma passagem subterrânea de carros, forte traço de um centro urbano com alto grau de complexidade. Faz isso com seu cavalo Cruzeiro e o parceiro Tahiel (Hector Briones) tal qual andarilhos de um filme de faroeste – mas com um ar ligeiramente distópico, próximo de “Era uma Vez Brasília” (2017) de Adirley Queirós.
Todavia, na outra ponta, Furtado se debruça nos escritos do escritor uruguaio Eduardo Galeano. E não há anacronismo que se sustente na América Latina. Em nosso texto desta semana sobre cinco curtas-metragens contemporâneos do Paraguai (que chamamos de “Quando o Latim Não nos Contempla“) lembramos de como a casta opressora de nossa sociedade segue inalterável desde que o homem branco aqui chegou. Por isso, uma narrativa que crie paralelismos dentro da trama, tal qual a formatada nesta obra, amplia a sensação de que vivemos ciclos infindáveis de “males” a “piores”. Contrapõe o facão e elementos regionalistas históricos com a composição das novas cidades – motoqueiros e seus rifles.
No mesmo texto lembramos de “King Kong en Assunción” (2019), um dos filmes mais provocativos de 2020. Em “Última Cidade” há a conexão de dois elementos quase inafastáveis de quem transita pela América Latina que o vincula a esse filme. Eles surgem aqui, entretanto, de forma invertida. Ao contrário do matador de aluguel do filme dirigido por Camilo Cavalcante, que cansa do sangue para desenvolver maior contato com a terra – encontrando a ancestralidade, João inicia sua jornada, literalmente, cavando. A montagem criará conexão e diálogo com uma cena em que ele mete a mão na areia. Poderia, inclusive, ampliar o leque de ambientes em que foi negado ao povo que aqui estava o direito de cavar o que é seu, data a riqueza de cenários possíveis na região.
Nós só chegaremos perto de uma sociedade mais justa e igualitária quando dialogarmos com nossos vizinhos. Não há, inclusive, interesse nesse desenvolvimento. Todavia, o audiovisual brasileiro – que se enriquece com a mesma sanha de um jogador que entra em um cassino com um trevo de quatro folhas atrás da orelha – conseguiu não apenas ser crítico com seu passado, renovar sua linguagem e encontrar representações. Ele tem feito pontes com nossos hermanos de forma que, cada vez mais, obras como “Última Cidade” sejam – com sua narrativa imersiva – guias de reflexão. João identifica esse inimigo comum, aquele que – segundo ele – deixa nossa terra doente e nossa água ruim. Não consegue consumar seu direito à moradia e se ergue como um cowboy moderno para fazer sua própria Marcha para o Oeste.
Na cruzada por habitação, o clímax de sangue terá como antagonista, por óbvio, o rico empresário especulador imobiliário. Não sem antes, no potente início do ato final, um mulher negra acender seu cachimbo e materializar as linhas de Galeano, ensinando a lógica decolonizante pela qual precisamos passar. Até que Tahiel, que do estranhamento por falar espanhol se transforma em um guru realista, é bem mais latino-americano que o outrora Sancho Pança.
Em “Última Cidade” ele dá a fórmula capaz de solucionar nossos problemas: cortar cabeças e costurar bocas. No levante otimistamente autoritário e realisticamente fascista pelo qual passamos nos últimos anos, fica a receita para que esse demônio seja exorcizando, essa lógica opressora expurgada. João mete a mão na terra porque precisamos sempre trazer o ancestral à superfície, precisamos saber o que há debaixo de nós e que morreu no mesmo processo de luta o qual estamos.
Veja o Trailer:
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