Sinopse: “Um Homem, Uma Mulher” é o despertar do amor entre um solitário convicto e uma mulher precocemente viúva. Ele, piloto de corridas (Jean-Louis Trintignant). Ela, roteirista de cinema (Anouk Aimée). Os dois tentam conduzir um relacionamento sincero e bem humorado em meio às insistentes demandas familiares e profissionais.
Direção: Claude Lelouch
Título Original: Un homme et une femme (1966)
Gênero: Romance
Duração: 1h 43min
País: França
Nunca e Sempre aos Domingos
Montmartre 15-40. Se envolver pela produção francesa dos anos 1960 e não guardar na memória o telefone de Anne Gauthier, personagem de Anouk Aimée em “Um Homem, Uma Mulher“, é praticamente impossível. Revisitar o grande sucesso da carreira do diretor Claude Lelouch, vencedor do Grand Prix do 20º aniversário do Festival de Cannes (lembrando que, entre 64 e 74 não houve entrega de Palma de Ouro e o troféu foi dividido com o italiano “Confusões à Italiana“), é um virtuoso saudosismo de um Cinema, até hoje, capaz de tocar aqueles que romantizam sua própria fruição, ainda mais os que se apegam tanto às idealizações que passam a vida sem sair delas. Um pouco do próprio cineasta, que 55 anos depois resgatou o passado em “Os Melhores Anos de uma Vida” (2019).
A Apostila de Cinema iniciou uma viagem por uma trilogia para, na ponta final, descobrir que Lelouch não quis que fosse assim. Na produção mais recente ele cria uma ponte imediata, como se a narrativa do romance entre Anne e o piloto Jean-Louis Duroc (Jean-Louis Trintignant) fosse uma centelha que nunca se apagou de suas mentes – e nunca tenha encontrado um revival. O filme, com toda a bagagem audiovisual que atravessou as décadas, soa como a exploração de um sentimento que se figura incerto, uma cicatrização capaz de gerar novas dores. Isso a partir de uma viúva que perde o trem de volta ao levar a filha à escola e se depara com um homem capaz de quebrar a expectativa do agressivo galanteador – apesar da segunda parte ser verdade.
“Um Homem, Uma Mulher” usa a moral francesa e a crítica à monogamia imposta como uma fagulha até a metade do longa-metragem. Provoca o espectador ao não confirmar de plano que seus protagonistas não possuem impedimentos clássicos para viver um amor. Nos fustiga ao deixar em aberto possibilidades de tornar aquela paixão um erro. Quando o faz e Anne lê os símbolos como um equívoco na sequência em preto e branco que trouxemos como imagem deste texto, nos perturba porque nos convencemos que não existia amarras sociais, morais ou qualquer elemento externo capaz de abalar a trajetória que se inicia. Só que não podemos controlar o que vem de dentro. Anne traz uma visão não corrompida do marido que partiu, que – de acordo com Jean-Louis – não viveu o suficiente para desapontá-la.
O roteiro original de Lelouch ao lado de Pierre Uytterhoeven deu à obra o segundo e menos provável Oscar no ano de 1967, vencendo até mesmo o vencedor do ano seguinte em Cannes, “Blow Up: Depois Daquele Beijo” (1967). O primeiro foi o de melhor filme estrangeiro, o que seria ainda mais barbada se o clássico italiano “A Batalha de Argel” não estivesse no páreo. A direção de Claude e a atuação de Aimée também foram lembrados, em um caso de múltiplas indicações de produção de outro país ainda rara nas festas da Academia.
Porém, nenhuma cena se tornou mais icônica do que a trilha sonora de Francis Lai, que iniciava ali uma carreira de mais de cem trabalhos até sua morte em 2018 – incluindo o inesquecível tema de “Love Story: Uma História de Amor” (1970). Há, ainda, a versão francesa de “Samba da Benção”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, em uma cena que entrou no imaginário do cinema europeu e teve uma tentativa de recriação em “Rosa e Momo” com “Malandro” de Elza Soares.
Ouça “Samba Saravah”
Roubando de “Love Story” uma frase, “amar é nunca ter que pedir perdão“, não é verdade? As duas revisitações de Lelouch à sua criação inoxidável (em 1986 e 2019) parece trazer parte do conceito do romance de Erich Segal. Só que o que nos embrulha até hoje em uma sessão de “Um Homem, Uma Mulher“, um filme de 1966, é o exercício por ele criado de esgotamento. Um esgotamento de prazer, a ideia da finitude enquanto dura, tão demarcada como desculpa para um olhar masculino, mas que esconde a visão libertária de decidir sobre o perecimento quando algo que depende de você. E se arrepender. Amar é se arrepender. Amar é não viver a plenitude de um amor, pelos mais variados motivos.
Anne é a prova de que há inúmeras formas de expressão do amor. Todas diferentes entre si, independente dos agentes. É verbo transitivo, não é verdade? Não apenas porque se ama “alguém”, mas também porque se ama “de alguma forma”. Assistido novamente em um contexto de discussão sobre representações, é fácil encontrar os momentos em que o cineasta filma para si. Quebra a narrativa dessa paixão doce e dramática em sequências onde sua paixão por carros é refletida na rotina de Jean-Louis. Mesmo assim há poética também nessas construções, principalmente quando somos envolvidos pelo som estridente de um veículo à máxima velocidade. Duroc está se preparando para o rali de Monte Carlo e, com a cabeça no amor, tira por completo as mãos do volante. Entende que precisa ser um pouco passageiro da própria vida. Por outro lado, não há quem os guie para que eles permaneçam unidos.
De forma ligeiramente mais contemplativa do que o cinema clássico, a obra ganha intensidade a partir do senso de urgência daquele amor. O diretor demarca as vidas em separado nas duas primeiras cenas, envolvendo a exploração da cidade e nos apresentando o lindo balneário de Deauville, que ficará para sempre marcado a partir desta produção. Há, ainda – retomando o que mencionamos acima – alguns ensaios sobre a ideia por trás das representações pela arte. Não com o verniz contemporâneo, mas de uma maneira bem mais ingênua. Em parte por se colocar em um audiovisual menos preocupado em formação crítica, mais deleitoso do que delituoso.
Só que alguns diálogos em “Um Homem, Uma Mulher”, dão pistas de que a própria forma de fruição pelo público impactava na concepção de produções como esta. Anne e Jean-Louis, em certo estágio, falam sobre o ato de ir ao cinema, enquanto espaço de diversão. A consequência é que as pessoas “não levam a sério, só vão quando estão bem“. De fato, a impossibilidade de termos os filmes em nossa rotina sem se deslocar para uma sala escura fazia desta manifestação artística uma outra coisa. Por sinal, parte do virtuosismo hoje identificado não foi proposital. Estamos diante de um cinema de guerrilha, realizado com uma equipe de menos de dez pessoas e que possui sequências em preto e branco mais pelo orçamento reduzido do que por uma opção de linguagem.
Os tempos mudaram e hoje conseguimos viajar seis décadas no tempo, de uma França pré-1968 até um domingo frio no Rio de Janeiro no mês dezesseis de isolamento social em 2021. Não conseguimos mais viver a expectativa de quem espera o crush pedir à telefonista para conectá-lo a Montmartre 15-40. E, por mais que a sensorialidade de “Um Homem, Uma Mulher” seja impactada pelas mudanças tecnológicas, das cidades, das expressões audiovisuais e dos conceitos que impedem a romantização e a idealização do amor – a fagulha acessa por Claude Lelouch ainda gera identificação porque, usando outro chavão, “é impossível ser feliz sozinho“.
“Certos domingos começam bem e terminam mal”, como diz o personagem de Trintignant – e quem já viveu as despedidas de um amor à distância sabe a melancolia que um final de tarde nos traz. Somos capazes de jogar tudo para o alto, seja para viver a plenitude de amor, seja para fugir e transformar aquele trem no último. Até o dia em que não há um novo domingo para ser vivido.
Veja o Trailer: