Sinopse: “Um Lugar Silencioso” se passa em uma fazenda dos Estados Unidos, onde uma família do meio-oeste é perseguida por uma entidade fantasmagórica assustadora. Para se protegerem, eles devem permanecer em silêncio absoluto, a qualquer custo, pois o perigo é ativado pela percepção do som.
Direção: John Krasinski
Título Original: A Quiet Place (2018)
Gênero: Terror | Drama | Ficção
Duração: 1h 30min
País: EUA
Muito a Dizer
Fazer o caminho inverso de uma revisitação, logo após assistir à sua continuação, fez muito bem a “Um Lugar Silencioso“. Amplia o desapontamento e a frustração naturalmente expressada em “Um Lugar Silencioso – Parte II” (2021) – a despeito da total coerência e unidade com a qual ele se realiza, até mesmo se pensarmos de forma ampla, em diálogo com o filme de origem. Torna as impressões e sensações vivenciadas há três anos, quando se tornou um fenômeno de bilheteria em algo ainda maior, consolidando a ideia de que a criação de John Krasinski é, de fato, um dos melhores longas-metragens norte-americanos daquele ano.
Indicado apenas ao Oscar de melhores efeitos sonoros, em uma das inacreditáveis vitórias de “Bohemian Rhapsody” (2018), o que se identifica na base do roteiro (que no primeiro tratamento possuía apenas uma fala) é um dos destaques do início ao fim – e vale lembrar que o problemático “Green Book: O Guia” (2018) foi o vencedor desta categoria, que ainda tinha outra narrativa polarizante, “Roma” (2018), além do espetacular e injustiçado “Fé Corrompida” (2018) entre os nomeados. Centrado na família Abbott, de cinco e, logo depois, quatro pessoas, somos apresentados a um mundo onde nossas vozes foram sequestradas.
Lidando com uma criatura monstruosa com sistema auditivo sensível, poderoso e amplificado, os seres nos identificam ao mínimo som que produzimos. Nos atacam sem negociação e, no espaço ao qual temos acesso, vitimaram quase a totalidade dos humanos. O cineasta nos enche de elementos que possibilitam uma poderosa formulação em nossas mentes, mesmo em trama simplificada – como um bom clássico costuma ser em campanhas iniciadas com uma popularidade bem menos provável que os gêneros que levam multidões às salas de cinema em todas as épocas.
Como a indústria é um fator a parte, vários donos de salas reclamaram da recomendação de manter-se em silêncio para a melhor experiência. Isso fez com que o consumo de comida e bebida fosse evitado por alguns – e até reprimido por outros espectadores. Porém, ao custo de menos de 20, a produção arrecadou mais de 350 milhões de dólares ao redor do globo – um pouco mais da metade apenas nos EUA, tornando insustentável a negativa de desenvolvimento de uma continuação e uma possível franquia.
Um prólogo no dia 89 faz do som um elemento quase imperceptível – e dali em diante viveremos os dias 473 e 474. Ficamos na ponta das cadeiras, de frente para a telona, em 2018 e novamente o fazemos no sofá em 2021. Mesmo sabendo todos os passos que a família seguiria – mesmo com a destruidora releitura que o diretor soltou na praça nas últimas semanas. A perda inicial do menino Beau (Cade Woodward) gera um sentimento de culpa por parte das duas personagens femininas. A jovem Regan (Millicent Simmonds) toma para si a responsabilidade de ser madura, forte, a líder de uma geração que parece ser a última da Terra. Já Evelyn (Emily Blunt) vive um turbilhão de emoções pessoais no meio de apocalipse. O luto por um filho e o fim da gestação de outro. Uma criança que já nasce sem o direito de falar.
Muito já se comentou sobre as metáforas por trás de “Um Lugar Silencioso” (2018). Retrato da Era Trump, em que uma barulhenta minoria extremista, intolerante e às raias do fascismo esmagava seus oponentes em plena Era da Informação. Não estamos diante do primor visual, virtuosismo técnico e representatividade que fizeram de Jordan Peele um expoente do período. Krasinski, tendo no curioso rol de produtores o espetacularizante Michal Bay, forja a partir da polidez, usa ferramentas básicas para trazer pistas, em um jogo audiovisual que já conhecemos e amamos pela maneira com a qual sempre nos envolvemos. As características de Regan, uma jovem surda, deu àquele núcleo o conhecimento em linguagens de sinal, um comportamento que garantiu sua sobrevivência. A ideia original era não legendar esses diálogos, deixando o público leigo no idioma carente de informação.
A partir de informações de jornais providencialmente bagunçadas na propriedade onde a família fincou sua resistência, permitimos entender aquela crise como algo mundial. Dentro de bolhas, nunca saberemos que o mal que outros sofrem é bem parecido com o nosso. É preciso ter acesso às falas, aos discursos, algo que os Abbott desesperadamente tentam esclarecer, para além da própria sobrevivência. O filme é bem construído, mais do que apenas intrigante. Do cozimento silencioso de uma janta sem refogar, ao gestual de uma oração que não nos permite identificá-la, passando pelo resgate do romance em uma dança baseada no compartilhamento de um fone de ouvido.
Nas relações de poder, Lee (John Krasinski, que também interpretou as criaturas em uma roupa de captura de performance) é um pai ainda preso aos estereótipos de gênero. Como quando pretere Regan e leva Marcus (Noah Jupe) para uma missão exploratória e de descompressão. Assim como o som, a trilha sonora de Marco Beltrami (de mais de cem trabalhos, incluindo a recente trilogia “Rua do Medo“) opera em crescendo, permitindo que o longa-metragem alcance um clímax de narrativa grandiosa, mesmo mantendo o minimalismo nas representações – o que torna sua conclusão aberta (ou, melhor, incompleta) como algo bem recebido se pensarmos sua unidade. Sem gorduras, nada parece fora do lugar. Do enquadramento de um prego levantado que retornará como fator relevante mais a frente, ao aspecto que faz o destino como um aliado.
Ficará para sempre marcada a passagem em que um parto e um bebê, acontecendo e nascendo em um mundo que nega garantias básicas de nossas expressões. Sem nenhum tipo de liberdade, a realidade de “Um Lugar Silencioso” encontra várias formas de nos fazer refletir. Mas, é tão poderoso quanto para aqueles que se permitem apenas viajar em sua história e nas muitos imagens e poucos sons formuladas a partir dela.
Veja o Trailer:
