31º Kinoforum | Um Olhar Latino-Americano | Sessão Micromundos
Sessão Micromundos
Muitos poderiam ser os recortes possíveis para a cobertura do Kinoforum desse ano que conta com 212 filmes. Completamente online, forma que está sendo adotada por todos os grandes festivais, o evento já é um espaço de atenção para todos os curta-metragistas brasileiros. Decidimos seguir o recorte latino-americano, além de ver mais alguns filmes, para fazer um pequeno balanço das produções da região. Chamaremos de “Um olhar Latino-Americano“. Outra proposta interessante, poderia ser seguir os passos da Mostra Novas Áfricas, que conta com produções contemporâneas do continente.
O bom, no entanto, foi perceber que as produções têm adotado como padrão a exibição em alguns festivais simultaneamente, assim, vocês poderão, por exemplo, ver o peruano “Mamapara“, aqui resenhado e por Jorge Cruz dentro da cobertura da 9ª Mostra Ecofalante. Para os entusiastas do curta-metragem, nossa dica é que anotem os que lhes parecerem mais interessantes porque existe a possibilidade de que eles apareçam em algum outro festival. Além disso, o Kinoforum irá deixar todas as obras online até dias 30 de agosto e, mesmo sabendo que no momento em que escrevo esse texto, sobrarão menos de 24 horas para que vocês possam desfrutar dessa canja, vale a pena.
Como o nome sugere, a Sessão Micromundos vem para reunir uma série de obras que se desenvolvem a partir de uma personagem central ou de alguns pequenos grupos. Assim, o que podemos perceber é que ,apesar de muito distintos em forma e narrativas, há um tema que permanece nesse conjunto de filmes – a relação entre o sujeito e o que o cerca.
Kini
(Hernán Oliveira, 2020)
Em “Kini“, vemos uma senhora que acabou de ganhar 50 milhões de pesos com uma raspadinha. Ao conseguir reunir toda a família, em um momento raro, a aparentemente inofensiva senhora percebe que eles estão efetivamente mais interessados na fortuna vindoura e pouco se importam com suas vontades. Então, “Kini” ao invés de se transformar na fábula do filho pródigo acaba nos remetendo a um mito, o de Cronos, o rei de devora seus filhos.
O velho rádio que escutava antes da chegada da prole parece anunciar a “tragédia”, que “filhos vamos deixar a esse mundo”, diz o locutor. Em um primeiro momento , não conseguimos fazer a relação tão direta com as pistas iniciais que o diretor Hernán Oliveira nos deixa.
O curta uruguaio consegue traçar um perfil de cada um dos personagens com leveza e mesmo com a atitude drástica da matriarca, faz com que a narrativa se desenvolva de forma divertida e inusitada. Lembra um pouco o seu vizinho “Relatos Selvagens” (2014).
Com seus onze minutos, “Kini” passa extremamente rápido para o espectador que fica querendo saber um pouco mais sobre a trajetória das personagens até ali. Águeda Restaino (Kini) se mostra incrível ao desenvolver os comportamentos ambíguos da senhorinha que todos gostaríamos de ter como vizinha.
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S.O.S.
(Ángela Tobón Ospina, 2019)
O segundo filme da sessão chama atenção logo na sinopse. “S.O.S.” traz um ar de Wes Anderson em sua fotografia. Ao explorar os tons pasteis, porém com cores fortes, a diretora colombiana Ángela Tobón Ospina nos faz imediatamente mergulhar no universo paralelo que cria para que as almas esperem por uma oportunidade de voltar. Devo admitir que a sinopse foi uma das que mais me chamou a atenção.
Talvez, pela pouco oferta de produções no estilo principalmente no Brasil, mas também na América Latina como um todo. Esse mundo fantasioso criado pela cineasta nos faz lidar com as situações de morte de uma maneira mais fluída, pois trata-se de vencer ou não uma prova de nado.
A simbologia da água e da luta, no entanto, se fazem presentes na obra. Ospina consegue ao mesmo tempo criar um curta romântico e abordar um tema como o envelhecimento de maneira suave, porém propositiva e profunda. As relações estabelecidas pelos moradores temporários do grande ginásio de natação nova vontade para retornar ao mundo do concreto, do cotidiano ,do extremamente temporalizado.
É com a beleza singela, porém aguda do amor que as vontades voltam a existir. E, não é assim mesmo?
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Mamapara | Mãe Chuva
(Alberto Flores Vilca, 2019)
“Mamapara“, além de figurar nessa sessão do Kinoforum, também faz parte da 9ª Mostra Ecofalante que a Apostila de Cinema cobre há alguma semanas. Assim, além de ver a minha percepção por aqui, vocês poderão ler também as impressões de Jorge Cruz.
O recorte denominado Micromundos contou com duas ficções e dois documentários. “Kini” e “S.O.S.” se valem muito bem de sua narrativa construída. Assim também podemos entender os dois documentários que se seguem como recortes de uma América Latina real ,sem explorar estereótipos ou cartões-postais. Em “Mamapara”, do diretor Alberto Flores Vilca, ele faz de sua mãe protagonista.
O corpo cansado de Honorata Vilca Mamani é o reflexo das lutas que a vida lhe impôs. Órfã, desde cedo percebeu que precisaria tomar as rédeas de sua vida e, seja de que maneira fosse, Mamani não se deixaria vencer. As histórias contadas e revividas pela senhora quíchua nos apresentam um Peru bem longe da cosmopolita Lima ou dos destinos turísticos que são cidades como Cuzco e Nazca. Ainda que possamos ver a quantidade de casas improvisadas e a pobreza que cerca Lima, a vida de Honorata nos remete a uma quantidade infinita de mulheres que devem viver sob as mesmas condições.
O céu nublado que nos faz chorar no Peru, é o mesmo que nos faz chorar na Argentina, na Colômbia, no Brasil. O céu da desigualdade e do desprezo pelos povos originários.
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Cacheira
(Felipe Holguin Caro, 2019)
“Cacheira“, de Felipe Holguin Caro, finaliza nossa primeira sessão do Olhar Latino-Americano com um pouco de humor e retomada de tradições.
Trazendo um hábito popular colombiano de ridicularizar casais que se separam e retornam em pouco tempo, a cacheira é também uma maneira de unir toda a comunidade para fazer uma espécie de festa comunitária. Assim, todos sabem que estão sujeitos a uma cacheira a qualquer momento.
A força da tradição se impõe e mostra desde crianças , até pessoas mais idosas animadas com a possibilidade de circular de madrugada pela cidade no interior da Colômbia e constranger um vizinho que se encontra na posição já citada.
É um jogo e ,ao mesmo tempo, uma manutenção de laços. Por mais que para nós, que vivemos nossa individualidade de maneira bem privada, possa parecer uma invasão, os moradores da pequena vila parecem se divertir e entender o espetáculo como performance de um elo maior que só poderia ser feito com aqueles com quem se tem intimidade.
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Ficha Técnica da Sessão Micromundos
Kini (Hernán Olivera, 11′ – 2020, Uruguai)
Sinopse: Quando uma doce velhinha consegue reunir sua família para dizer que ganhou na loteria, seus filhos desprezíveis começam a se comportar como abutres lutando pelo prêmio.
S.O.S. (Ángela Tobón Ospina, 23′ – 2019, Colômbia)
Sinopse: Aurélio (72) é salva-vidas em um mundo paralelo, para onde vão as pessoas em coma. Esther (67) chega à piscina e se junta a um grupo de pessoas que treinam para uma competição. O vencedor retornará à vida com suas famílias.
Mamapara | Mãe Chuva (Alberto Flores Vilca, 17′ – 2019, Peru/Bolívia/Argentina)
Sinopse: No altiplano peruano, Honorata Vilca, uma mulher analfabeta de ascendência quíchua, vive com seu cachorro e vende doces para viver. Quando começa a estação das chuvas, ela relata passagens de sua vida, até que numa tarde acontece algo fatal, que parece fazer o céu chorar.
Cacheira (Felipe Holguin Caro, 13′ – 2019, Colômbia)
Sinopse: Quando um casal briga em público, se separa e por fim se reconcilia como se nada tivesse acontecido, os vizinhos organizam para eles uma Cachera: uma serenata bizarra para ridicularizá-los. Uma tradição no interior da Colômbia desde a metade do século XX.
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