Ursa

Ursa Filme Crítica Poster

10º Olhar de Cinema | BannerSinopse: Viviane (interpretada por Adriana Sottomaior) se desdobra entre a maternidade solo e o trabalho remunerado. Quando uma tragédia acontece no bairro de periferia em que mora, o desamparo e a culpabilização a lançam em uma espiral de desconfianças. Aliando o mergulho no universo íntimo das personagens ao compromisso com a denúncia social, em seu primeiro longa, o diretor de “Aquele Casal” (Olhar ’19) dá sequência à tematização das violências que se alastram e se sobrepõem ao acontecimento de um episódio traumático.
Direção: William de Oliveira
Título Original: Ursa (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 10min
País: Brasil

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Ciclos de Crueldade

Tecer opiniões é o grande esporte da contemporaneidade e somos convidados a expressar toda sorte de julgamentos na rotina de consumo (e troca) de informações pelas redes sociais. Quando outros agentes refutam alguma delas, doses de empatia, tolerância e paciência são bem-vindas. Do contrário, colocamos tudo a perder em um debate quase sempre improdutivo e muitas das vezes agressivos. Há momentos em que nos deparamos distribuindo parte do ódio que evitamos nos processos de reflexão e desconstrução.

Viver em sociedade carrega consigo a missão de equilibrar as suas ideias e o exercício do que você acha certo com o que é melhor para o local e para o grupo no qual você está inserido. O excesso de convívio potencializado pelo distanciamento físico, que altera nosso poder de interpretação e o de comunicabilidade, tem sido cansativo. Todavia, há momentos em que podemos nos confrontar com os próprios pensamentos, mediados por contadores de histórias ou artistas que nos apresentam problemas sem, entretanto, impor soluções. Uma sessão de cinema – mesmo que nas “antigas” salas, era uma experiência coletiva, mas o olhar do outro, até que o filme terminasse, era projetado por nós. Ou interpretado pelas reações dos presentes.

Até que saíamos dessa experiência e, aí sim, dialogávamos sobre. Seja com pessoas próximas ou lendo um texto como esse. É bem provável que você chegue aqui depois de ter visto “Ursa“, que a Apostila de Cinema teve acesso no último dia do 10º Olhar de Cinema, onde o longa-metragem de William de Oliveira foi apresentado na mostra Mirada Paranaense. Nele, o dilema da comunidade construída no roteiro é direto: uma mãe se desespera ao descobrir que seus filhos foram atacados pelo cachorro do vizinho. Ou um homem se desespera ao descobrir o sumiço de seu cachorro e uma vigília para atacá-lo após os filhos da vizinha se machucarem em seu quintal.

No julgamento das redes sobram argumentos para deslegitimar ou culpabilizar quaisquer desses agentes. Mães, crianças, animais, vizinhos. Vivemos um tempo em que virtualmente colocamos uma lupa sobre um fato, uma manifestação ou uma imagem e dela traçarmos paralelos edificantes sobre as mais nobres questões da Humanidade – ignorando que a visão panorâmica é importante para diminuir nossas chances de erro. Essa prática foi tão absorvida por todos, que o ator Diego Perin, intérprete de Jonas, conta na conversa com Camila Macedo e a equipe do filme no canal oficial do Olhar de Cinema no YouTube (e que você assiste ao final da crítica), que usou como método não ler a parte do roteiro de Viviane (Adriana Sottomaior).

Afinal, não teria como ele não se conectar com aquela que deveria ser, digamos, sua antagonista. Esse procedimento é possível em “Ursa” porque o cineasta mantém as duas perspectivas em paralelo. Nesse redemoinho de vítimas e agressores, o diálogo se torna impossível. Antes que ele exista, a sociedade em torno do evento já o transformou em algo insustentável. São tempos em que a obrigação de se fazer algo rápido, para não prolongar a impunidade, gera um ciclo de crueldade que não sabemos onde vai parar. Por motivos nobres ou não, antes de se compreender as origens, as causas e as consequências. Antes de qualquer acolhimento, o revanchismo reativo, de um justiçamento que todos nós podemos ser vítimas um dia.

O melhor dessa história ser contada em um filme é que, à primeira vista, você está dialogando apenas consigo. Antes de desconstruir suas impressões incongruentes sobre algo, você faz a sua leitura – e tem tempo de absorvê-la, pelo arco de narrativa tradicional, que não deixa a câmera sufocante e urgente que perpassa toda a trama fazer da obra um baque seco. Nas trocas visuais entre perspectivas, vamos encontrando versões possíveis e, por mais que as crianças sejam as maiores vítimas do ocorrido, a sociedade não deveria entender essa sentença como uma autorização para a barbárie.

Ursa” não é a primeira e nem será a última produção a trazer essa manifestação cruel, acreditando que o linchamento e seus desdobramentos é a solução. Talvez tenha passado o tempo em que diria tais coisas na arena que se tornou uma rede social, que não lhe permite aquela balançada de cabeça que compreende os argumentos contrários na mesa do bar ou na carteira de uma sala de aula.

Porém, por mais que retome assuntos, traz um dilema com visões sobre seres e pessoas tão estimada por todos nós, que encontra identificação com facilidade – e em momento fundamental para realizarmos. Sem deixar de complexificar um homem que, ao se deparar como vilão eleito, também não permite baixar a sua guarda para assumir a parcela de culpa que lhe cabe. Um ciclo que pode até terminar ali, mas gerará alguns novos por todos que se envolveram ou compadeceram com o fato.

Alguns de nós já voltaram com tudo para o convívio social, mas grande parte vive (assim esperamos) as últimas semanas de um regime de exceção, em que não nos encontramos e nossos olhares são mediados por telas. Será que estamos preparados para esse retorno ou vamos aplicar o individualismo arrogante e violento com o qual nos acostumamos no distanciamento e semi-anonimato que cada vez mais nos é permitido?

Assista à conversa entre Camila Macedo e a equipe de “Ursa”:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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