Sinopse: Filmado como uma carta de amor aos cães, “Vida de Cão” acompanha o cotidiano do trio canino Zeytin, Nazar e Kartal em busca de comida, abrigo e segurança. Em sua jornada, os animais embarcam em aventuras solitárias pela cidade de Istambul, na Turquia, fazendo amizades com os humanos que conhecem pelo caminho. A produção propõe uma viagem sensorial para novas maneiras de enxergar o próximo.
Direção: Elizabeth Lo
Título Original: Stray (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: EUA
Em Busca da Virtude
Saindo do óbvio, “Vida de Cão” é um documentário que nos oferece uma experiência pela perspectiva daqueles que temos como nossos melhores amigos. A diretora Elizabeth Lo acompanha a realidade de três cachorros que ocupam as ruas movimentadas de Istambul, centro urbano mais importante da Turquia, em suas formas de sobrevivência e interação. Ao fundo, um fragmento de realidade da sociedade daquele país, sob o comando de Recep Tayyip Erdoğan, Presidente desde 2014, após nove anos como Primeiro-Ministro.
Há uma característica cultural relevante para tornar aquele território mais atraente enquanto objeto narrativo – e a montagem dá conta de contextualizá-lo logo de início. Por quase um século a forma como os animais de rua foram tratados era no sentido de puro extermínio. Uma sequência de protestos contra essa crueldade levou à criação de uma lei que proíbe os maus tratos a eles. Como forma de demonstrar que a equidade e o respeito de outras espécies não é uma expressão da modernidade, a edição pinça palavras do filósofo grego Diógenes de Sinope, que há vinte e cinco séculos já elogiava a virtude dos cães.
A ideia aqui é um pouco diferente de “Res Creata” (2020), obra que assistimos há alguns dias na programação da 10ª Mostra Ecofalante de Cinema. Traz menos a ideia de convivência harmoniosa e mais uma provocação de altas doses de empatia. Zeytin, Nazar e Kartal são apresentados em suas complexidades e particularidades, em um olhar de quem tem as ruas na palma das mãos (no caso, das patas, com o perdão da piada). Uma observação comum ao gênero, que já o faz com humanos em produções interessantes sobre a realidade de pessoas em situação de rua – e como a invisibilização do indivíduo gera um tipo diferente e profundo de conhecimento, pouco compartilhado pela ignorância de seus pares.
Aqui os personagens precisam agir, já que seus testemunhos soariam incompreensíveis a nós. “Vida de Cão” constrói bem as situações que denotam a necessidade da formação de alianças e parcerias pontuais, tanto entre a espécie como para conosco. A intenção é sobreviver, um dia de cada vez, em uma rotina competitiva que tornaria inócua qualquer matilha formada. Apesar da associação ser um traço de personalidade dos cachorros, eles precisam ser um pouco lobos solitários na realidade na qual estão inseridas.
Ao mesmo tempo eles são parte da história recente da Turquia, que tem em Istambul um ponto de efervescência. Lo mostra que, por trás de um “documentário sobre cães de rua” não há apenas uma narrativa sobre cães de rua. Há ocupação dos espaços, desenvolvimento territorial e leituras sociais pela câmera de sua realizadora. Além da busca por comida, das esporádicas festas quando alguém – geralmente as crianças – lhe permite, há uma comunidade de pano de fundo. Seja no protesto das mulheres contra a escalada autoritária de Erdogan, seja na vida noturna que acaba gerando brigas inevitáveis quando a própria segurança está em jogo.
Enquanto no Brasil há uma discussão que soa como inacreditável dada a expressão fascista elevada ao status de opinião, há quem critique o fato de se prover comida a humanos em situação de rua, que nesse momento passam fome e frio nos grandes centros urbanos. Se Janaina Paschoal, deputada federal mais votada da história do país, se volta contra um ato cristão de um padre como Julio Lancellotti, o que dizer dos outros debates que nos esperam no futuro?
Se ao final de “Vida de Cão” você acreditar que ali está “apenas” um filme que nos leva, por pouco mais de uma hora, para o microcosmo da rotina de três simpáticos cachorrinhos turcos, talvez seja preciso voltar a fita. Não deixe o mosquito que traz o vírus da desumanização te picar e observe o que está ao lado e atrás de Zeytin, Nazar e Kartal com o mesmo olhar cínico e desconfiado de Diógenes. Há muito sendo dito pelas imagens e pelos nossos amiguinhos do que a simples lógica de quem busca comida e um pouco de carinho.
Veja o Trailer: